Este texto não procura contribuir para a análise dos possíveis méritos ou deméritos da badalada série White Lines, não só por falta de competência crítica, mas também porque não me interessa especialmente essa análise. Vi e gostei. Tão simples quanto isso. É certo que já apreciei mais outras ficções, menos outras, e assim continuará a ser. Gostei mais disto, menos daquilo et cetera. E haverá melhor, haverá pior, e sei que já se escreveu e disse muito sobre a série. Pouco me importa. Não tenho por ofício a crítica televisiva nem artística e também não sei bem qual a tabela para medir o que é melhor ou pior a não ser o gosto, o pensamento e a emoção de cada um de nós – para além, claro, de um conjunto de padrões mais ou menos definidos sobre cada forma de expressão. Adiante, porque quero escrever sobre aquele que, para mim, é/foi (ao ver) o tema essencial da série nos seus dez episódios. E qual é? O veneno, melhor, uma certa espécie de veneno, cuja letalidade, aliás, é forte e nem depende muito da quantidade, depende mais do modo como o envenenado o toma e a ele se prende.
E esse veneno não é a cocaína nem qualquer outra substância estupefaciente. Nem é algum dos pecados capitais que podemos encontrar espraiados pela série, como sejam a ira, a soberba ou a inveja. Menos ainda um certo hedonismo inconsequente e irrefletido, mascarado de gula pela vida. E também não é o culto da luxúria como forma de sublimação e de redenção. Aliás, duvido muito de que a luxúria, ela mesma, seja um veneno, exceto nos efeitos secundários que pode ter para quem a cultiva e/ou para terceiros atingidos pelos seus múltiplos e criativos ricochetes. E o veneno de que falo também não é a ganância nem comportamentos que, em geral, as sociedades, na sua absolutamente necessária autopreservação, preveem e punem como crimes. De tudo isso a série está cheia, e é até um farto prato freudiano – para alguns, até pode haver ali, como sói dizer-se, “areia de mais para a sua camioneta”.
Para mim, o veneno que ali há, e que é o tema principal que vi e vejo, é o passado. Não o passado como aquilo que foi, aconteceu e passou, e que é sempre uma chave essencial da vivência e da compreensão do presente e do futuro, mas o passado como algo que se quer revisitar, redimir, encontrar e/ou (re)descobrir. É o passado, nessas suas dimensões, que envenena, estraga, fere, mata e destrói. O passado nunca se revisita sem um enorme potencial de destruição, e não se redime, nem se encontra, nem se (re)descobre. Muito menos se corrige ou compensa. O passado aconteceu, o passado foi e, tendo sido, é. Ponto final. Isso é muito, mas é tudo. Quaisquer outras intenção ou conjugação verbais sobre o passado são um mar de perigos, prisões e potenciais efeitos letais. Não saber isso é meio caminho andado para o abismo e para enterrar o presente e o futuro sob sete palmos de terra – vindos da ilusão de que o passado se recupera, sublima, reconstrói. E ainda mais sob a terra pesada que vem da ideia de que o passado se arruma. Não arruma, não sara, só contamina. Mau é não atentar no ensinamento – recusando essa inclinação sedutora, às vezes irresistível – subjacente ao que Petrónio escreveu no Satyricon: “… animus, quod perdidit, optat / Atque in praeterita se totus imagine uersat”. (A alma anseia pelo que perdeu/ e às sombras do passado toda se inclina.) Faz mal, inclinando-se. Envenena-se e envenena à sua volta. White Lines é principalmente sobre isso.
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