O conceito de “guerra civil” poderia servir de exemplo numa entrada de dicionário do que seja uma contradictio in adjecto. Nas guerras ditas “civis” abundam militares e forças militares várias, assumidas como tais ao ponto de o direito internacional humanitário procurar garantir o mesmo nível de cumprimento de obrigações por parte de todos os beligerantes, sejam eles militares proprio sensu ou “civis”, estando estes últimos muitas vezes equipados militarmente ao mesmo nível ou até com maior sofisticação do que os primeiros.
As guerras civis são muito apetecidas, desde logo por parte de terceiros que não podem ou não querem envolver-se directamente num conflito. As guerras civis acabam por ser o cenário em que as equipas B das grandes potências se enfrentam. O séc. xx generalizou as guerras por procuração, formalizando a morte da suposta natureza “interna” das guerras civis. A mais célebre das guerras civis da primeira metade do século passado acabou de vez com as piedosas intenções de não intervenção, plasmadas na absoluta ineficácia dos diversos bloqueios de apoios aos beligerantes. A Guerra Civil de Espanha trouxe a modernidade da intervenção de Estados terceiros num conflito que opunha dois projectos de Estado. O modelo prosperou durante a Guerra Fria e atingiu o apogeu nas guerras de independência das colónias em África e na Ásia. O conflito no Vietname, ou, mais próxima, a Guerra Civil Angolana servem de exemplos.
O fim da URSS foi visto por alguns como anunciando o fim das guerras por procuração. Infelizmente, a História mostrou quão precipitado foi este anúncio. Ao dia de hoje há três guerras civis em curso em que a actividade dos beligerantes internos só subsiste com ajuda externa: Líbia, Síria e Iémen. Em todos estes conflitos há peões de brega patrocinados pela Federação Russa, pelos EUA e pelos respectivos aliados regionais no mundo árabe, que disputam o cobiçado prémio de superpotência islâmica (Irão, Turquia, Arábia Saudita, Egipto…). Não existindo nada parecido com uma política externa na União Europeia, a “política” em relação a cada um dos conflitos passa pela concorrência no apoio aos vários beligerantes, muito em função da história colonial (França, Itália) e dos interesses económicos dela herdados.
Nesta lista de patrocinadores há uma ausência gritante. Por razões históricas e por falta de meios, a China sempre defendeu a não intervenção bilateral ou mesmo multilateral no âmbito da ONU. Coreia e Vietname constituíram duas sonoras excepções, justificadas pela proximidade geográfica, muito ao gosto do costume dos EUA de intervenção no quintal a sul de Miami.
A China contemporânea quer escrever a história dos próximos séculos e considera que já possui os meios para o fazer. Também não abandonou o critério da proximidade geográfica como justificador da intervenção nos assuntos internos de Estados terceiros, guerras civis incluídas. Tem apoiado nos últimos anos o Governo de Damasco, quer com financiamento e produtos básicos, quer com armas, munições e assessoria militar. A aposta em Bashar al-Assad poder-se-ia justificar como alavanca para incomodar os EUA e aprofundar as contradições das derivas de Trump na região. Mas há uma razão fundamental para o envolvimento de Pequim na Guerra Civil Síria: o Partido Islâmico do Turquestão. A secção local conta com vários milhares de combatentes uigures, provenientes da região chinesa de Xinjiang e que, tendo passado pelo Afeganistão, se dedicam à jiade contra Damasco e seus aliados.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990