Sadeq Hedayat. Um mocho em voo circular

Sadeq Hedayat. Um mocho em voo circular


Em “O Mocho Cego”, o escritor iraniano Sadeq Hedayat faz colidir o modernismo literário ocidental contra as robustas paredes da sua Pérsia natal. O resultado é o escombro da memória posto às costas de um homem, a mala de viagem para um louco à procura de uma qualquer verdade. Só a periférica geografia do autor e…


Sadeq Hedayat – O Mocho Cego
Traduzido directamente do persa por Carimo Mohomed
1ª Edição: Fevereiro 2020
E-Primatur

Nem o sonho ou o delírio são capazes de imaginar uma cor nova. Limitados em recursos, socorrem-se do acervo da memória, uma biblioteca que o tempo acumulou. Ficaram esquecidas as origens de muitos dos seus volumes, apagaram-se os títulos de algumas capas, rasgaram-se encadernações, inundou-se a cave, comeram-nos os ratos. O sonho é uma realidade desviada do presente, uma tangente. O que dele emerge é uma antologia de todos estes volumes, um confuso conjunto de textos que angústias e temores unem num volume único que o homem delirante lê em voz alta, um romance do qual é autor, personagem, editor, encadernador e livreiro.

“Não é aquilo que eu sinto, vejo e penso, imaginário e bem diferente da realidade?”, pergunta o narrador logo no primeiro capítulo. É a partir desta interrogação que se ergue o texto, que não sendo um tratado filosófico, é um profundo inquérito à natureza da realidade e aos limites da experiência. A viagem interior empreendida por este que se propõe a “transcrever tudo aquilo de que me recordo, independentemente do que me tenha ficado na memória sobre as relações que ligam os acontecimentos” é uma tentativa de encontrar a própria sombra, o reflexo verdadeiro e não a carcaça que principia a morrer. “Escrever para a sombra” é um mergulho no abismo da memória, na confusão entre alucinação e facto, história e pura imaginação. Onde está a verdade?

Sadeq Hedayat, nascido em Teerão em 1903, encontrou o seu caminho para a verdade no recém nascido modernismo ocidental. Ainda jovem, viaja para a Europa para um período de estudo na Bélgica e em França. Regressa a casa poucos anos depois, durante o domínio de Reza Xá, para enxertar na milenar cultura persa o modernismo de Kafka, do qual é herdeiro. Às perguntas novas, entregam-lhe respostas velhas e este livro, lançado em 1941, é banido. Dizia-se que compelia ao suicídio os seus leitores. Hedayat regressa a Paris em 1951, onde morrerá, no mesmo ano, pela sua própria mão. O “Mocho Cego”, magnum opus do escritor iraniano, é agora publicado pela primeira vez em português, numa tradução directa do persa.

Esta obra é uma descida aos infernos da memória de um narrador sem nome. Por entre pesadelos de falsidade óbvia e relatos cuja semelhança com a realidade os torna indistinguíveis do delírio, o escritor deixa migalhas de pão de objectos, personagens e palavras que atravessam todo o tipo de estados mentais, da vigília ao coma, da lucidez ao delírio induzido pelo ópio. Encapotada entre exageros surrealistas e paisagens tétricas, ergue-se lentamente a forma de uma verdade longínqua, a sombra de uma memória formativa que a loucura repete, distorce, e mantém viva. A força narrativa de Hedayat é o modo como desdobra esta única memória infantil, como a faz ganhar força de buraco negro, capaz de dobrar espaço e tempo, de dominar a carne e o espírito lá de bem longe, dos recessos da memória. Esse desejo infantil, essa mulher que nunca possuiu, é o princípio e o fim da angústia deste homem que “(…) quis saber se ela estava ciente de que eu estava a morrer por sua causa. Se estava, eu morreria pacífica e felizmente – seria o homem mais feliz à face da Terra”. É na sua desilusão que reside a sua morte e é do medo desta morte inexorável que se alimenta o fogo circular da loucura. O rio, a queda, o vestido negro estendido no chão a secar, o corpo nu atrás de um cipreste para mudar de roupa, um olhar à socapa, um sofrimento eterno.

Da morte foge-se sempre às arrecuas, aos tropeções numa confusão delirante que derruba os objectos da memória, que entrelaça as linhas com que esta se foi cosendo. Apertam-se nós cegos, quebram-se as linhas mais frágeis. Se não são úteis as preces, se viver para sempre é esperança vã, “O que é a eternidade? Para mim a eternidade era brincar às escondidas com aquela puta nas margens do rio Suren. Era um fechar momentâneo dos olhos, quando escondia a cabeça no seu colo”. Viver para sempre é ficar suspenso no passado que a morte nunca há-de alcançar. A infância perdida é um esconderijo, só lá se está a salvo do “medo de que o verme no caminho do nosso tanque se possa transformar numa serpente, de que a minha colcha se possa tornar uma lápide com dobradiças que poderiam escorregar e fechar os seus dentes de mármore, enterrando-me vivo.” 

O homem está condenado a fugir da morte na confusão e perplexidade das “ moscas que invadem a casa no começo do Outono: moscas magras, sem vida, com medo do zumbido das próprias asas. Agarram-se às paredes e permanecem imóveis até que percebem que estão vivas. Então, ricocheteiam furiosamente contra as portas e janelas, até que os seus corpos mortos caem ao chão.” A personagem de Hedayat consuma o seu ódio e a sua vingança, crê esmagar os ecos da memória. O que lhe sobra? Uma mancha de sangue, que quanto mais tenta apagar mais cresce.

Hedayat escreve “O Mocho Cego” como quem desenha múltiplos círculos concêntricos que nunca se aproximam de um centro. Ficam de roda, linhas praticamente sobrepostas, ligeiramente deslocadas umas das outras até que a repetição deste traçado engrosse uma linha única, tão espessa que qualquer nova circunferência é invisível e deixou de se entender se haverá sequer um centro. Não andaremos todos neste redor, linhas de carvão invisível, sem um centro à vista?