O estado de emergência não declarado


É mais que tempo de todos os órgãos de soberania assumirem as suas responsabilidades e exercerem as suas competências constitucionais.


O país está a assistir ao decretar de restrições dos direitos fundamentais dos cidadãos sem paralelo na história da nossa democracia, num quadro de pretensa normalidade constitucional, quando é manifesto que continua a viver numa grave situação de emergência.

Na verdade, ao contrário de Espanha, que só muito recentemente saiu do estado de emergência, tendo feito todo o programa de desconfinamento ao abrigo desse estado, Portugal terminou com o estado de emergência, precipitadamente, no início de Maio. Desde então, o Governo tem vindo a aprovar medidas restritivas dos direitos fundamentais ao abrigo da Lei de Protecção Civil, a lei 27/2006, de 3 de Julho, por resolução do Conselho de Ministros, sem qualquer controlo do Presidente da República e do Parlamento, que pelos vistos não parecem minimamente interessados em efectuar esse controlo. E nessas resoluções do Conselho de Ministros chega-se ao ponto de declarar que o seu desrespeito constitui crime de desobediência, como se a definição dos crimes e dos respectivos pressupostos não fosse da competência do Parlamento (art.o 165.o, n.o 1, c) da Constituição).

Precisamente para evitar chamar o Parlamento a intervir nas matérias que são claramente da sua competência, o Governo decidiu aprovar um decreto-lei para estabelecer coimas nas situações de calamidade, contingência e alerta, previstas na Lei de Protecção Civil: o decreto-lei 28-B/2020, de 26 de Junho. Segundo o Governo afirma, a sua legitimidade para aprovar esse diploma resulta de a Lei de Bases da Proteção Civil prever no seu art.o 62.o que, “sem prejuízo das sanções já previstas, o Governo define as contraordenações correspondentes à violação das normas da presente lei que implicam deveres e comportamentos necessários à execução da política de proteção civil”. Parece, assim, que o Parlamento, em 2006, foi muito previdente ao imaginar que um Governo, 14 anos depois e num período de pandemia mundial, iria necessitar dessa habilitação para publicar um diploma de combate à pandemia, dispensando-se assim qualquer intervenção parlamentar para o mesmo. Em qualquer caso, o facto de este diploma só surgir no fim de Junho demonstra que o país saiu do estado de emergência sem qualquer quadro sancionatório adequado para a violação das regras estabelecidas para o combate à pandemia. Não é, por isso, de estranhar a manutenção constante de um elevado número de infecções, que estão colocar Portugal na lista negra dos países mais atingidos pela pandemia na Europa.

O decreto-lei em questão estabelece coimas para quem violar as regras de ocupação, permanência e distanciamento físico nos locais abertos ao público, a obrigatoriedade do uso de máscara ou viseira e a não realização de celebrações e de outros eventos que impliquem uma aglomeração de pessoas em número superior ao definido, entre outras proibições (art.o 2.o). Mas, além disso, permite, em caso de infracção, a aplicação de medidas de polícia aos infractores como a de determinar o encerramento provisório de estabelecimentos e a dispersão da concentração de pessoas em número superior ao limite permitido (art.o 6.o). Trata-se, mais uma vez, de medidas de duvidosa constitucionalidade fora do estado de emergência, uma vez que contendem com a liberdade de iniciativa económica e com o direito de reunião dos cidadãos, que a Constituição garante.

É manifesto que a gravidade da situação que o país atravessa implica uma restrição aos direitos fundamentais das pessoas de tal ordem que só é constitucionalmente admissível com o decretar do estado de emergência. E o estado de emergência não pode ser decretado com base em resoluções do Conselho de Ministros, tendo de ser estabelecido por decreto do Presidente da República, após autorização do Parlamento. Usar uma Lei de Bases de Protecção Civil, criada para situações muito menos graves, não passa de uma operação de cosmética para inglês ver, julgando que tal vai fazer crer a alguém que a situação de pandemia não se reveste da gravidade que é manifesto continua a existir.

É, por isso, mais que tempo de todos os órgãos de soberania assumirem as suas responsabilidades e exercerem as suas competências constitucionais neste domínio. Não vai ser manifestamente com a Lei de Protecção Civil ou com decretos-leis a estabelecer contra-ordenações que o país vai sair da situação de emergência que atravessa.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990