Gravado entre o Porto, NYC, Hamburgo e Tóquio, o mais recente trabalho do alter-ego musical de Bruno Miguel, :PAPERCUTZ, procura explorar vários lados da eletrónica. Desde os mais intróspetivos aos que nos colocam a dançar.
Com colaborações de Catarina Miranda, conhecida pelo seu trabalho como Emmy Curl, Ferri, uma revelação da música japonesa, e a alemã Lia Bilinski, deixemos Bruno explicar o que esteve a criar em King Ruiner.
Primeiro, o contexto:
Em cada novo álbum de :PAPERCUTZ pretendo sempre uma progressão, com o cuidado de rever e perceber quais os elementos de trabalhos anteriores que faz sentido manter. Existe uma ligação simbiótica entre cada uma das edições e King Ruiner começa no ponto final deixado pelo anterior de 2013 The Blur Between Us que explora as relações humanas e pelo tema editado em 2017 Trust/Surrender que dá lugar a uma introspeção que se torna reveladora. Nós somos claramente um ser social, o que nos ajuda a perceber melhor o nosso lugar no mundo mas ao mesmo tempo comecei a lidar com a ideia de que não somos totais donos do nosso destino. A conclusão que cheguei é que num determinado ponto no tempo existem sempre estas duas variantes, uma sensação ilusória de controlo que faz com que possamos evoluir como pessoas mas simultaneamente é importante uma aceitação de que temos que nos render ao desenrolar de determinados acontecimentos e aprender com eles. Neste novo álbum existe uma narrativa que acompanha um indivíduo que luta contra sentimentos de fracasso e ambições não correspondidas. E isso foi a maior aprendizagem que retiro deste trabalho, uma procura de um sentido de esperança e de que é normal falhar, a vida não é um caminho entre um ponto A e B apesar do que é contado na cultura popular, existem percalços e a sua aceitação só nos torna mais resilientes. Aliás quando escrevi o álbum estava longe de imaginar o que iria acontecer e que isso seria uma realidade alargada ao resto do mundo, ou seja, estes tempos incertos que nos encontramos devido aos efeitos colaterais da pandemia. De forma a descrever essa realidade introduzi elementos com uma carga exótica por exemplo como melodias Orientais, que apelam a um maior escape e até algum sentido de tranquilidade, que é uma das necessidades da personagem principal e à ideia de resiliência e superação como nos coros inspirados na tradição Africana ou nos seus poliritmos. Tudo isto, claro, expresso através de canções com uma base eletrónica pela liberdade que o género e as suas ferramentas me proporcionam, e como tal tentei dotar o trabalho de modernidade e algum experimentalismo estético. O resultado final são canções apenas mas que espero que com o tempo dados pelos seus ouvintes e com ajuda das seguintes explicações, estes poderão desvendar que por detrás da sua aparente simplicidade existe um grande cuidado.
Choral
O álbum começa com um tema instrumental em que a voz desempenha apenas um papel melódico através de uma repetição de um motivo coral em que as diversas linhas vocais se vão adensando num acorde harmónico até chegar a um ponto de uma explosão de sons. Esta melodia vocal aparece de novo no fim do álbum construindo uma experiência circular. Foi uma das primeiras ideias que tive e que mostra na narrativa do álbum que apesar de uma resolução final nada impende que o/a protagonista (normalmente deixo isso em aberto nas letras para que outros se possam identificar) não possa ser colocado outra vez na sua situação inicial. Uma ideia muito importante no álbum são estes coros que fazem lembrar uma tradição oral africana. A sua raiz conta com cantores amadores que se expressam na música da forma mais genuína possível e que apesar das suas enormes dificuldades expressam o seu gosto pela vida. É assim importante neste álbum, como se nota nos temas Choir, Choral, e ainda Chorus na versão japonesa do álbum, como elemento sonoro e simbólico. Inicialmente pensei em fazer diversas gravações e dobragens para obter esse efeito com uma vocalista ou até contratar um coro mas depois tive a ideia de tal ser um processo digital. Quando estive num estúdio em Nova Iorque num encontro de vários músicos, um engenheiro de som falou-me do Prismizer, um sistema utilizado que multiplicava digitalmente as vozes como uma extensão melhorada do típico vocoder mas que lhes dava uma dimensão entre o orgânico e o digital. Mais tarde emulei o processo para este álbum de forma que as vozes processadas fizessem parte integrante e recorrente do álbum.
Halfway There
Primeiro tema cantado, com a voz da Catarina, que descreve uma relação conturbada que vive tempos de hedonismo mas com as suas escolhas no futuro postas em causa. Halfway There conta com uma estrutura instrumental bastante minimal, contaminado por um ritmo eletrónico R&B com baixos negros e fortes, acordes em sintetizador digital, percussão de pratos orientais, e uma linha melódica principal feito por um processamento digital de uma flauta, chegando a um instrumento que não existe no mundo real mas não deixa de soar algo orgânico. Este tipo de exploração está muito presente no álbum, pois o projeto é conhecido por misturar dois tipos de instrumentação, acústica e a eletrónica e eu pensei que seria desafiante uma fusão de ambos, criar instrumentos digitais novos. Engraçado que nos últimos tempos a música eletrónica tem-se pautado por um período nostálgico de algumas ferramentas, sintetizadores ou caixas de ritmos clássicas, que não pondo em causa porque também os uso para criar uma proximidade com o ouvinte eu penso que se perdeu o enorme potencial de um computador. Aliás muito do trabalho feito neste álbum passa precisamente por gravações de alguns instrumentos e depois de tratar os resultados no domínio digital, além de que permitiu-me trabalhar nas canções em diversos lugares e ao mesmo tempo voltar a descobrir novos processos na música eletrónica.
Your Beliefs
Um dos elementos mais importantes em Your Beliefs é que ao contrário do que tende a acontecer num refrão de uma canção, neste a voz desempenha apenas um papel de textura melódica e rítmica através da repetição e a melodia principal é executada por um sintetizador e uma guitarra elétrica em uníssono, e depois em harmonia em quintas, a tocarem uma melodia oriental. A guitarra foi dos primeiros instrumentos com o qual senti um ligação e, por estranho que pareça dado o contexto, comecei pelo Blues e foi uma surpresa agradável descobrir que tal como no género mencionado, as melodias Japonesas tradicionais são baseadas na escala pentatónica. Talvez pela sua simplicidade e enorme musicalidade sobreviveu à passagem dos tempos, desde a música tradicional mais antiga ao indie pop ou metal por exemplo. Em termos líricos ela aborda uma luta entre o que a personagem principal pensa ser o seu caminho, subversivo ao que lhe chega do exterior, e que é um tema recorrente ao longo do álbum.
Lowlands
Interpretado pela voz da Lia, é sobretudo marcado por um sentido estético bastante cinemático na sua introdução, porque eu tenho um gosto enorme pela composição para filme, um meio para o qual tenho escrito nos últimos tempos, e que depois desenvolve-se numa estrutura bastante mais rítmica e marcada por desde percussão tribal a sintetizadores associados à música dança, normalmente mais frios, e ainda um baixo redondo e quente que completa o arranjo. Lowlands vive sobretudo de um grande dinamismo entre os versos contidos e o refrão eufórico e a voz da Lia, que é mais grave e agressiva que por exemplo a Catarina e pareceu-me perfeita para este tema. Poder trabalhar com várias vocalistas permite precisamente dotar o álbum de uma maior diversidade estética. A letra aborda a necessidade de termos que passar por momentos menos felizes numa metáfora a alguém que se entrega ao mar, passando por um tempestade e na dúvida se encontra o regresso à costa. Não é nada muito complexo e por vezes luto por entender o que serve melhor uma canção, se uma história complicada ou palavras que poderão ter alguma ressonância mais imediata em termos visuais no ouvinte, sendo o último o que se aplica neste caso.
Indifference
De novo com a Lia na voz principal, tema bastante percussivo e com diversos motivos corais que o atravessam sendo que uma das coisas que o torna interessante é o contraponto com o anterior pois o refrão é mais contido que os versos. Algo propositado claro, pois a letra fala de uma aceitação de que existem experiências ou traços de personalidade que nos marcam e nunca nos irão deixar mas cuja aceitação pode antecipar tempos melhores. Outro dos elementos interessante é a sua ponte, uma secção que tende a ser ignorado mas que aqui assume uma verdadeira resolução do tema, antes do refrão final, com uma paragem ambiental forçada e uma voz intimista que se torna cada vez mais intensa na sua declaração.
Exit Places
Introdução da Ferri no álbum que alterna entre o Inglês e Japonês, Exit Places é dominado por uma batida urbana forte e com esta a interpretar vozes em diversos registos, desde o sussurrado ao mais expressivo, sobretudo nos coros, entre a a luz e a sombra como espelho do difícil que por vezes é fugir de certos elementos que nos apresentam fugas momentâneas, uma recorrência de vícios. Em parte poder escrever sobre estes assuntos torna-se uma catarse para mim e espero que para outros também. Compor este álbum foi uma ferramenta de salvação, pois permitiu-me distanciar-me de alguns comportamentos e obrigar-me a focar em trabalho mas que não foi fácil a sua conclusão. Portanto a música salva, não só a quem a ouve mas também a quem a escreve.
On Euphoria & Despair
Este tema instrumental apenas conta com uma gravação de uma mensagem em que é dito 'Her name is Hope' atribuindo uma figura humana à idea de esperança, e colocado a meio do álbum marca uma ponto de viragem nas letras pois a partir deste momento do alinhamento a noção de resiliência e sonhar com o um possível futuro torna-se cada vez mais forte. Novamente, e com alguma carga cinemática, pelo piano ou cordas suspensas, tem a sua melodia principal em modo leitmotiv, executada por sintetizadores que se cruzam em algumas notas (num efeito semelhante à música de Steve Reich) e que coloca na instrumentação um movimento e pulsação sem o uso de qualquer batida
Become Nothing
Existe alguma aproximação das letras ao universo literário desde o início do projeto :PAPERCUTZ. Já colaborei aliás com alguns escritores mas para este tema em particular, existia uma personagem que me vinha sempre à memória, a de Fernando Pessoa, a figura enigmática que está espalhada pelas suas personagens, um estranho niilista que tanto parecia adorar descobrir o seu lugar no mundo como negar a sua existência a um estado de pura contemplação. As ligações estão todas lá 'Book Of Disquiet', 'if dreams become blurred with everyday life?', "all I’ve ever wanted, pure nothingness. " mas em Inglês porque gostava que quem nos acompanha fora de Portugal o pudesse descobrir, se ainda não o conhecem. Eu acho mesmo que se existe na cultura um espaço onde os autores Portugueses se destacam, é na escrita. Em termos de gravação/estúdio é cantado por uma Alemã que o desconhecia e que perdemos algum tempo a falar sobre o seu trabalho em Hamburgo, e muitas das linhas vocais que ficaram na gravação final são da demo original, gravadas no conforto silencioso da noite e que acabaram por ser as mais genuínas. Em termos de arranjo, o tema vive de muito espaço nos primeiros versos e refrões para acompanhar o universo sonhador e contemplativo dele e culmina com um ponto de tensão final e ultimamente uma sensação de libertação.
All Of The Ways
Um dos temas mais melódicos do álbum, a harmonia principal é em tudo semelhante ao efeito rítmico explorado em On Euphoria & Despair mas com um instrumento acústico Japonês processado tal como na técnica explorada em Halfway There, um ritmo R&B com percussões tribais, um baixo bem presente com um ataque curto que marca o início de cada verso e um sustenido que carrega o refrão criando uma nova base harmónica para o motivo melódico já anunciado. Este ao início está um pouco desfasado e encontra-se no refrão. Em termo de letras, a canção retoma a temática de Exit Places mas numa fase em que o protagonista reconhece precisamente os seus defeitos e a melhor forma de fugir destes.
Choir
Tema instrumental composto maioritariamente por vozes processadas digitalmente pelo método análogo a Choral e inspirado de uma forma mais rudimentar pelo trabalho do essemble Japonês Geinoh Yamashirogumi. A ideia era conseguir criar uma peça que serviria de interlúdio para o início do fim do álbum, e que se desenvolve com a repetição das vozes mas cuja harmonia instrumental varia de forma a criar novas estruturas melódicas. A música coral está na base da musica sacra mas neste caso a ideia era apelar a uma espiritualidade, como uma ferramenta de introspeção. Como agnóstico tenho-me questionado sobre a necessidade de contemplar a nossa existência numa experiência para além da intelectualidade.
ルーズエンド (Loose Ends)
Cantando inteiramente em Japonês (o restante nome em Inglês serve para uma compreensão do assunto da letra apenas) que fala de uma necessidade de resolução e de tal como feridas que saram, concluir questões deixadas em aberto, aceitando o passado. A sua estrutura instrumental é diferente de outros porque introduz um elemento mais dançável, com um bombo muito presente e uma percussão orgânica feita à base de elementos típicos e outros como vozes, e uma alternância entre versos e refrões como se um fosse elemento de resposta ao outro.
Halcyon
Numa continuação da ambiência club anterior, Halcyon acelera ainda um pouco mais o tempo e conta apenas com a minha voz (em outros estou presente sobretudo como voz de apoio) e uma base instrumental inspirada nos ambientes negros do Gqom, a música eletrónica de dança de África do Sul mais tarde introduzida na noite Europeia, caracterizado uma pulsação acelerada, baixos distorcidos e que foge à regra de uma típica assinatura 4/4 pela introdução de polirritmia. Além disso, e algo que faço num álbum de forma a criar alguma consistência é introduzir no seu alinhamento elementos sonoros recorrentes, e como tal a linha melódica principal é tocada por uma derivação do instrumento digital tipo flauta ultimado em Halfway There.
Year New
O ponto final do álbum encontra como tal o espaço necessário para ser bastante expansivo, com uma intro em que uma repetição vocal retirada do refrão brinca com o seu espaço numa assinatura de tempo, uma secção central e um outro. Year New desenvolve-se lentamente com 2 vozes, a minha e da Catarina, num tom quase falado e com a repetição quase abusiva da palavra 'New' porque pretende forçar no ouvinte a ideia de novos começos e o que isso pode implicar. Algo particularmente premonitório é a noção de 'New Real' o que pode ser considerado o novo normal para o protagonista e que se vem tornar uma expressão bastante universal nos dias de hoje. Segue-se uma progressão até a um único refrão bastante expressivo e cantado a várias vozes. Muitos dos elementos instrumentais utilizados ao longo do álbum retornam e vão-se acumulando até um pico ao qual se segue uma desconstrução ambiental e que remete quem está a ouvir para um espaço distante e de alguma calma e resolução, ou assim o espero, para a personagem do álbum e para todos os outros que possam simpatizar com este. Afinal a música e a arte em geral é um pouco isto, uma descrição mais ou menos abstrata de vivências nas quais nos podemos rever.