Covid-19 e a prototipagem rápida de políticas públicas

Covid-19 e a prototipagem rápida de políticas públicas


Agora que estamos focados nos problemas do desconfinamento, temos de evitar regressar à mesma normalidade que, aliás, é insustentável.


O verdadeiro problema da humanidade, dizia E. O. Wilson, é que “temos biologia paleolítica, instituições medievais e tecnologia divina”. Vivemos neste paradoxo, dominados por emoções ancestrais, limitados por instituições inadequadas e difíceis de reformar, e na ilusão de um potencial tecnológico infinito mas que, muitas vezes, é difícil de concretizar.

A recente crise da pandemia de covid-19 é, provavelmente, o melhor exemplo deste paradoxo. O medo é a maior condicionante comportamental da pandemia. Foi o medo que nos confinou, evitando o descontrolo. É o medo que representa a principal ameaça para a economia no desconfinamento. As nossas instituições medievais, hierárquicas e burocráticas, no essencial, conseguiram relatar o que aconteceu de forma espontânea. As conferências de imprensa e os comunicados são, no fundo, uma expressão política da autoridade do Estado sobre uma (des)organização que funcionou baseada no medo da população e na reação espontânea e orgânica de grupos profissionais e voluntários.

O estado de emergência não foi mais do que uma enorme experiência social sobre o futuro das políticas públicas. Confrontados com a crise, profissionais de saúde e serviços hospitalares foram capazes de tomar decisões, inventar e testar protocolos novos em tempo real. A recente entrevista de Roberto Roncon, do Hospital de São João, no Porto, é disso um exemplo notável. Imagino que o mesmo terá acontecido um pouco por todo o lado, fruto da motivação para ajudar e da nossa capacidade de improvisação. A tecnologia divina, que rapidamente o ecossistema de investigação e inovação colocou no terreno, foi outro exemplo. Penso que, hoje, todos reconhecem muito melhor a importância da capacidade instalada dos institutos de investigação e das universidades.

É neste contexto que urge repensar uma nova geração de políticas públicas baseadas na economia digital. O desfasamento entre a rápida evolução das tecnologias digitais e o desenvolvimento lento de políticas eficazes é evidente nos exemplos disruptivos de empresas como a Uber e a AirBnB. Para responderem a estes fenómenos, os Governos precisam de ter acesso a dados em tempo real e mecanismos ágeis que permitam que a reação seja efetiva sem comprometer a inovação. Infelizmente, empresas como a Google, a Uber e a AirBnB sabem muito mais sobre as dinâmicas das nossas cidades do que os seus responsáveis eleitos, tal como a Facebook ou o Twitter sabem muito mais sobre as opiniões dos eleitores do que qualquer partido político.

Os exemplos destas oportunidades começam a aparecer um pouco por todo o lado, em particular nos ambientes urbanos, mais abertos à inovação. Ciclovias e espaços públicos pop-up e estímulos à compra de bicicletas são um bom exemplo. Mas estes exemplos não são fáceis de replicar noutras áreas e de sustentar no tempo. Principalmente porque as entidades públicas não têm capacidade tecnológica nem recursos humanos qualificados para aceder, gerir e atuar sobre os dados. O exemplo é a forma como os dados sobre a covid-19 não são completamente fiáveis, multidimensionais nem acessíveis de forma aberta, gerando grande incerteza na decisão. A situação atual em Lisboa demonstra como os modelos puramente epidemiológicos não são adequados para descrever uma realidade social muito mais complexa. Compreender um fenómeno desta complexidade exige competências de saúde, mas também de várias áreas da engenharia e das ciências sociais. A dificuldade é que cada área tem modelos, linguagens e métodos completamente distintos.

A solução passa por implementar novas abordagens às políticas públicas. Primeiro, investir em infraestruturas de recolha e disponibilização de dados abertos sobre as nossas cidades, instituições, infraestruturas, ou seja, basicamente, tudo o que possa ser utilizado para melhor conhecermos o que nos rodeia. Segundo, criar equipas interdisciplinares que possam analisar os fenómenos de múltiplas perspetivas e que não dependam funcionalmente de nenhum ministério, departamento ou unidade, mas se orientem a missões ou problemas socialmente relevantes. Terceiro, seguir os métodos mais modernos de conceção de modelos e serviços centrados nas pessoas, e não nas necessidades das instituições ou dos seus exercícios de poder e autoridade. Quarto, abrir a atividade destas equipas a voluntários em sabática de empresas tecnológicas e instituições académicas que se sintam motivados para contribuir num determinado momento ou área. Quinto, introduzir rapidez no processo: conceber, testar, criar pilotos em dias e semanas, e não meses ou anos. Demonstrar claramente aos decisores e aos cidadãos que funciona e, depois, produzir o enquadramento legal e a regulação necessários.

A pandemia de covid-19 é uma grande oportunidade para repensarmos a organização das políticas públicas. Bruno Latour, um dos principais pensadores da atualidade, foi o primeiro a dar o mote: “Vamos tirar partido da suspensão forçada das atividades para fazer um balanço daquelas que gostaríamos de ver descontinuadas e daquelas que, pelo contrário, gostaríamos de ver desenvolvidas”. Em poucas semanas, a pandemia suspendeu um sistema económico que todos diziam ser impossível de desacelerar ou redirecionar. Agora que estamos focados nos problemas do desconfinamento, temos de evitar regressar à mesma normalidade que, aliás, é insustentável.

Professor catedrático do Departamento de Engenharia Informática do IST
Presidente do Instituto de Tecnologias Interativas (ITI/LARSyS)