Quando, nos já longínquos finais de fevereiro e início de março, o país começou a tomar consciência de que a pandemia de COVID-19 iria também ela nos atingir, recordo-me que a confusão reinava. Ora porque os hospitais não tinham o mínimo indispensável (falta de máscaras, gel desinfetante, testes de deteção do vírus, equipamentos de proteção individual, etc.), ora porque a comunicação da Direção Geral de Saúde, não era concisa, concreta e tranquilizadora, para não dizer mesmo contraditória. Quem não se lembra da célebre reunião do Conselho Nacional de Saúde Pública que decidiu manter as escolas abertas, quando os pais que tinham essa possibilidade já tinham retirado os filhos das salas de aula?
Com a declaração do estado de emergência, as coisas mudaram. Mesmo com todas as incertezas (que, hoje, ainda persistem, apesar de nos esquecermos disso), as autoridades de saúde foram bastante mais claras, o Governo também e os partidos políticos corresponderam com responsabilidade nacional. Era importante que o Serviço Nacional de Saúde não colapsasse, era importante que o país se munisse dos meios adequados para combater a pandemia, era importante que houvesse em Portugal o stock necessário para enfrentar o vírus. Era importante aumentar a testagem, responder aos surtos que o contágio comunitário (que não desapareceu) aqui e ali ia surgindo. Foi conseguido.
Simultaneamente, foi necessário começar a dar resposta imediata às consequências socioeconómicas do confinamento forçado e garantir que a economia nacional não fosse destruída em mês e meio de estado de emergência. Foi necessário que não houvesse rutura nas cadeias de abastecimento, em especial, a cadeia alimentar e aplicar medidas de mitigação dos efeitos económicos (apoios à quebra de rendimentos, à paragem da atividade industrial e comercial). Com mais ou menos acerto, mais ou menos rapidez, é minha opinião que, não obstante os nossos constrangimentos nacionais, a generalidade das medidas postas em prática foram no sentido correto e tiveram, também elas, um amplo consenso.
A somar a tudo isto, o reconhecimento público internacional, através de vários artigos na imprensa estrangeira, deu conta do “milagre português” por comparação a outros países do sul da Europa (Espanha e Itália). Portugal tinha conseguido evitar males maiores.
Penso que estas notícias foram mais perniciosas que benéficas, pois instalou-se a crença que o pior já tinha passado (o “pico” tinha sido ultrapassado) e a comunicação política de sinais contraditórios surgiu novamente.
Em abril e maio todos estávamos cientes que mais cedo que tarde teríamos todos de regressar a uma vida de aparente normalidade. Regresso ao trabalho presencial, reabrir estabelecimentos comerciais, levar por diante a vida na medida do possível. Sair de casa, para quem conseguiu permanecer em casa nos tempos iniciais da pandemia. Todos estávamos cientes que os contágios não iriam desaparecer, podendo inclusive aumentar, após o desconfinamento. Sabíamos dos riscos e a principal preocupação era garantir que o SNS conseguiria aguentar a pressão dos contágios, a Saúde Pública conseguir atuar atempadamente para isolar os novos casos identificados e que a responsabilidade individual de cada um de nós, tendo em conta, tudo o que já sabemos relativamente a distâncias, proteção individual, prevenção de contágios fosse suficiente para não termos que regressar a um novo Estado de Emergência. Nunca o objetivo no país foi chegar a julho e termos zero casos de novos contágios. Até porque sem imunidade comunitária, dificilmente se consegue estancar a propagação do vírus, mas, sim, termos capacidade de resposta.
Está certo que o restabelecimento da nossa atividade económica é fundamental para ultrapassarmos a crise, mas a preocupação exagerada com o número de casos (a existência de qualquer caso é algo negativo em si mesmo, mas sem vacina, sem cura, alguém pode honestamente achar que deixaremos de ter casos, como se fossemos uma qualquer ilha isolada no meio do pacífico?) talvez por causa da perceção que potenciais países exportadores de turistas terão sobre Portugal seja mesmo o mais relevante?
Acharia alguém há 2 meses que não iria haver contágios? Ou haveria mesmo alguém que achasse que problemas estruturais do país de décadas se iriam resolver neste curtíssimo espaço de tempo? Os problemas da habitação condigna? Os problemas de desinvestimento de décadas no transporte público? Da pobreza que leva à situação de sobre-exposição ao vírus? Os problemas de falta de recursos humanos especializados em toda a administração pública e em especial na saúde, segurança social, forças de segurança, ACT?
A consciência da realidade que temos e somos não pode, obviamente, levar ao imobilismo, mas a resolução de problemas estruturais que se estivessem solucionados tornaria tudo mais fácil e simples, também não irá ocorrer em semanas, meses e, alguns, nem em anos.
Resta-nos, portanto, a consciência pública que este vírus veio para ficar, enquanto não houver cura, e todos somos responsáveis pela redução dos contágios e por evitar que as pessoas afetadas pelo vírus seja o mínimo possível e com o menor número possível de mortes.
Esta é a nossa realidade, por isso é importante que no topo da administração pública, Governo incluído, não se comemore entusiasticamente qualquer vitória como se a COVID-19 fosse algo do passado, nem se entre em depressão porque há respostas que aqui e ali são necessárias dar e ainda não foram dadas, ou porque o país A ou B hoje não tem mais casos que Portugal. Preocupante seria vermos em Portugal o caos que já vimos com esta pandemia noutros países e isso felizmente ainda não nos aconteceu e todos esperamos que não venha a acontecer.
Porque a realidade não é estanque, a grande vitória será termos o país preparado para agir rápida e eficientemente, quando os problemas que não podem ser antecipados surjam. A grande vitória será sairmos desta pandemia melhores preparados para a incerteza do futuro.