Por vezes, somos confrontados com soluções inventadas por outros que, de tão óbvias, se não entende como ninguém as adotou e adaptou antes às suas próprias necessidades funcionais.
Refiro-me a um projeto que se está a desenvolver atualmente na Eurojust e que, precisamente, tem como propósito colecionar e tratar a informação e as lições resultantes dos casos mais relevantes que esta agência europeia, dedicada à cooperação e coordenação judiciária em matéria penal entre países da UE, acompanha e promove, e cujo objetivo é melhorar a sua intervenção futura.
Na verdade, parece estranho que uma ideia potencialmente tão simples e produtiva não tenha já sido levada à prática por uma magistratura que se quer hierarquicamente organizada e proativa como é – e deve ser – o Ministério Público (MP) português.
Acresce que o novo Estatuto do MP possibilita já algumas soluções que podem e devem ser exploradas e desenvolvidas exatamente para esse efeito.
O importante é, pois, tomar seriamente em consideração essas possibilidades e, desde logo, começar a organizar um trabalho de referenciação interna dos casos exemplares, tanto do ponto de vista dos resultados positivos obtidos como dos que foram negativos.
Desse modo, com espírito crítico – mas não necessariamente inspetivo ou disciplinar – se poderá dissecar, com rigor e sem complexos, as causas dos sucessos de uns ou dos insucessos de outros.
O MP português vê-se hoje confrontado com processos muito sensíveis e cujos resultados são de relevante importância para a credibilidade da justiça e do regime democrático.
Todavia, eles são, demasiadas vezes, condicionados por rígidas opções organizativas internas e por escolhas jurídico-estratégicas fundadas, é certo, em leituras legais viáveis, mas nem sempre suficientemente flexíveis para poderem alcançar os resultados possíveis a que, no fundo, a realização da justiça deve, antes do mais, almejar.
A deteção da preponderância de tais variáveis é, por isso, essencial à atuação dos magistrados quando tiverem de lidar com situações semelhantes.
A ultrapassagem de algumas destas condicionantes está nas mãos do próprio MP, enquanto magistratura organizada hierarquicamente, e a superação de outras depende de revisões legislativas.
As medidas a tomar devem, porém, apoiar-se na avaliação objetiva da eficácia, ou ineficácia, das soluções antes adotadas.
Todavia, para isso, é essencial que se estabeleça um projeto sério de análise crítica e detalhada dos casos mais problemáticos e relevantes.
Só dessa maneira será possível perceber, fundadamente, quais as condicionantes que, nuns casos, conduziram ao sucesso, e quais as que, noutros, conduziram ao insucesso das iniciativas processuais do MP.
É imperativo, pois, proceder a uma interpretação fina das diferentes opções de estratégia processual do MP e confrontá-las com a apreciação das estratégias da defesa que as contrariaram, procurando concluir, por fim, através de uma leitura abrangente, sobre a razão de ser das decisões judiciais que ditaram o destino de tais processos.
A verdade é que muitas das opções estratégicas tomadas resultam, por vezes, apenas de rotinas acriticamente repetidas, mesmo que se saiba das dificuldades delas resultantes.
E isto sem que o MP, enquanto instituição, procure, criticamente, inverter rumos ou descobrir soluções operacionais mais viáveis e eficazes para a realização de uma justiça possível: uma justiça que satisfaça, minimamente que seja, a sociedade.
Uma tal operação de análise pontual, mas sistemática e continuada, dos sucessos e insucessos dos casos mais relevantes e emblemáticos não pode, obviamente, prescindir da participação crítica dos procuradores que os conduziram nas suas diferentes fases, mas não deve, também, reduzir-se a ela.
É, pois, importante que, recolhidas as opiniões de quem interveio nos processos, seja feita uma leitura mais neutra por especialistas – magistrados, mas não só – que em tais processos não tenham estado diretamente envolvidos, nem enquanto titulares, nem enquanto responsáveis hierárquicos.
Só através do diálogo crítico, permanente e estruturado, entre atores envolvidos e os peritos alheios aos casos será possível escalpelizar, com algum rigor, as razões que conduziram certos processos a resultados pretendidos, e outros não.
As sínteses de tais avaliações poderão constituir não só uma base para corrigir o que estiver à mão do MP corrigir como, também, servir de suporte fundamentado a reformas legais e organizativas que se imponham.
É tempo de, além dos processos inspetivos – cujo objeto e abrangência deviam também ser repensados –, criar uma estrutura permanente de pesquisa crítica transversal, inter-regional, interdepartamental e suficientemente objetiva; uma estrutura capaz, por isso, de fornecer à estrutura hierárquica do MP e a cada procurador titular de um novo caso os dados de experiência necessários à definição concreta da mais eficaz estratégia para ele.
Isso só acontecerá, porém, se for possível colecionar, catalogar e apreciar os resultados dos casos mais relevantes, complexos e emblemáticos, partilhando internamente, sem sofismas nem complexos, os resultados de tal trabalho de análise crítica.