José Tolentino de Mendonça sente que estamos sedentos de uma sabedoria, no meio do trânsito infernal de uma sobreinformação e um ruído incessantes, e de mil não sei quês que nos afastaram do essencial. Ousa, contra a corrente, ser um dos aventureiros em busca de perguntas, sim perguntas, e de traços que nos indiquem um caminho. Por exemplo, o da senhora alemã que dava esmola a toda a gente que lha pedia. Não que não soubesse que havia gente matreira – e que, portanto, alguma vez iria ser enganada; mas, ainda assim, sempre que lhe pediam, dava. “E esse gesto, que parece insensato, salva o mundo. A insensatez daquela mulher – escreve Tolentino – enche o mundo de maior amor do que todos os apetrechos de uma prudência que facilmente se torna uma trincheira que nos defende do encontro com a vulnerabilidade, nossa e dos outros”. Esta história real, verdadeira que pode ler-se no requintado O pequeno caminho das grandes perguntas (Quetzal, 2017) remeteu-me, outrossim, para três versos, do poeta Charles Peguy, em um livro dedicado à Esperança (Os portais do mistério da segunda virtude, Paulinas, 2014), colocados na boca de Deus: “porque as crianças são minhas criaturas/mais do que os homens/porque elas ainda não foram derrotadas pela vida”. A morte, a separação, a doença, o sofrimento, os sonhos por cumprir, as vezes em que não estivemos à altura: ser adulto, de alguma forma, e sem negar as vitórias que felizmente registamos, é ter sido, também, derrotado (pela vida). A visão do vencedor puro, sem fragilidades, todo-poderoso é apenas uma mentira que alguém conta a si mesmo. E, aliás, da constatação da insuficiência própria, a compreensão de que carecemos de adimplemento. De completude. A vida é, por vezes, como escreve Tolentino de Mendonça, decepcionante. Nesse sentido, questão essencial é como respondemos, existencialmente, a essa derrota. Se só amarmos a vida como ideal, e à espera deste, nunca dela nos abeiraremos. E a vida passa, como areia movediça, por entre os dedos que a pretendem, mas já não conseguem, deter. É preciso, porventura, uma aposta, uma senha de confiança: viver, aconteça o que acontecer, como se estivéssemos ao colo; ou, como poderia dizer um teólogo, viver como se a realidade fosse…a realidade (a senhora alemã continuava, sempre e sempre, a dar a esmola, independentemente dos percalços, que não ignorava, quanto ao destino daquela).
O que nos permitiria, ainda, recuperar a virtude da compaixão (uma virtude de quem divisa no rosto do outro um mandato, com maiúscula, de responsabilidade por ele, uma virtude afastada do desespero e da indiferença): na compaixão, dá-se “a suspensão do julgamento sobre a vulnerabilidade do outro. Constrói-se como um consentimento oferecido ao outro como nos aparece, aqui e agora. A compaixão liberta-nos do peso do passado ou das idealizações do futuro: ancora-nos vitalmente neste instante, que é o que temos de viver”.
Tolentino de Mendonça tece, em textos, pequenos fios, madrepérola, pedras preciosas que são imprescindíveis ao – à imperiosa necessidade de – maravilhamento. E à ousadia de um topos sapiencial (elaboração de uma sabedoria sobre/para o humano, naturalmente situada em um dado mundo da vida, mas com capacidade de tocar uma enorme diversidade de humanos, ancorados em mundividências distintas). Que não se quer "teologia auto-referencial", e por isso procura habitar a grande diversidade (debilidade agraciada) de todos os quotidianos. Seja quando recorre ao haiku, seja no conjunto da sua poesia, seja nesta diarística, percebe-se muito a intenção de uma concentração no essencial, de esculpir, de chegar ao ponto, conjugando toda a simplicidade com toda a profundidade.
O padre e poeta, em O pequeno caminho das grandes perguntas, convoca, pois, como seu hábito, um bazar, excelso, de referências, escritores, realizadores, poetas, gente comum que sabe histórias e experiências. E, neste estádio da aventura humana em que nos situamos, talvez seja o filósofo Cioran a ser especialmente relido: “esse inesperado mestre contemporâneo dos caminhos da alma, explicava que a maior dádiva da religião só pode ser essa: ensinar-nos a chorar. As lágrimas dão um sentido de eternidade ao nosso devir. Elas guiam-nos da orfandade ao êxtase. São as lágrimas a linha divisória que distingue os seres que sabem tudo dos seres que não sabem nada. E se, por um absurdo, as lágrimas se esgotassem, o nosso desejo e o nosso conhecimento de Deus desapareceriam também”.
Tolentino não o diz aqui, mas, de facto, o Papa Francisco indica que uma das maiores debilidades do nosso tempo passa por termos desaprendido de chorar. E, eventualmente, acrescentaríamos, de tentar compreender o que neste (chorar) poderia ir, exemplarmente, enquanto expressão, não exclusiva mas possível, de impugnação do mal, assim nunca natural(izado). Da “presença real”, Transcendente, nessa impugnação (amorosa) (João Manuel Duque). E, com Ermes Ronchi, podemos redescobrir como a omnipotência de Deus é a omnipotência do amor. Deus, que em si mesmo, na imagem cristã Dele, é relação ao outro, sendo esse ato relacional a essência de Deus, pode o que o amor pode. E o amor – expresso sobre modos variados, da philia ao eros, desejavelmente, em qualquer dos casos, agapê – pode tudo.