A ars moriendi, segundo Walter Osswald

A ars moriendi, segundo Walter Osswald


Em nossos dias, exige-se que a vestimenta negra, de luto, desapareça num instante. Que a superação de uma morte que seja próxima se faça imediatamente. Demanda-se que qualquer referência à morte seja ocultada o mais rapidamente possível. A morte, na nossa sociedade, foi silenciada.


1. Dados do INE: actualmente, cerca de 60% dos óbitos verificam-se em ambiente hospitalar. Em 1984, 60% dos óbitos sucediam no domicílio; em 2008, a percentagem desceu para os 29,9% (os restantes 10% acontecem na estrada, no lar, num acidente momentâneo). Isto acontece, com certeza, em parte por factores culturais – o ocultamento da morte, a negação da dor e sofrimento, da velhice, ou o individualismo que pretende não tomar a cargo outrem -, mas uma abordagem apenas em sentido moral(ista) não esclarecerá por completo o quadro traçado: habitações há sem o mínimo de condições; famílias que têm que ter todos os seus membros a trabalhar; ausência, mesmo, de habitação são factores que concorrem, igualmente, para explicar o cenário vindo de descrever. Terrível é o hospital não estar preparado, apanhado desprevenido na curva da passagem do tratamento aos curáveis, aos susceptíveis de melhora, sem acomodar, na sua de estrutura física e dimensão humana (bastantes), a definitiva presença dos que se encontram na fase terminal da existência; ou, em casa, sem existir quem possa promover os devidos cuidados, sem o acompanhamento adequado à higiene e alimentação dos pacientes, ou sujeitos, estes, a um ruído insuportável dos vizinhos. "Morrer sozinho, sem apoio nem consolo não pode ser considerado resposta ao desejo de uma boa morte" (p.25). E acompanhamento aos doentes, por familiares, só ocorre em cerca de metade dos casos.

2. A expressão paliativos deriva, etimologicamente, de pallium, o manto: remete, pois, tal vocábulo, para o facto de o que se procura, ou visa, nestes cuidados não é já a recuperação (impossível) da saúde, mas antes o agasalho, o conforto, a protecção do doente, o respeito pela autonomia e dignidade da pessoa; acompanhamento no processo de morrer. 

Cecily Saunders principiou estes cuidados, compadecida com a situação de um jovem judeu, sem familiares, nem amigos próximos para dele cuidarem, em doença terminal. Foi da iniciativa de médicos e enfermeiros que surgiu o St.Cristopher Hospice. Sendo que se reconhece, hoje, que para além de os hospitais deverem estar capacitados, em termos de estruturas, para receber estes cuidados, também aos profissionais de Saúde não basta a competência profissional e a compaixão, necessitando de fundamentar bem – estudo e reflexão rigorosos – o seu agir: "hoje reconhece-se que não basta ao profissional de Saúde ser bem preparado e competente na sua relação com os enfermos. É necessário alcançar um grau de conhecimento teórico e prático compatível com uma especialização ou uma competência; e é necessário que, além da humanidade e compaixão, exista uma fundamentação ética do agir profissional, o qual se não adquire senão pelo estudo e pela prática" (p.29). É que, desde logo, é preciso definir o modelo de cuidados paliativos a instalar, ou aperfeiçoar.

3. Em nossos dias, exige-se que a vestimenta negra, de luto, desapareça num instante. Que a superação de uma morte que seja próxima se faça imediatamente. Demanda-se que qualquer referência à morte seja ocultada o mais rapidamente possível. A morte, na nossa sociedade, foi silenciada. Esquecendo-se que esse ignorar da morte pode conduzir a uma bem maior dificuldade de cicatrização da perda. Se a evocação da morte não adquirir um carácter obsessivo, mas se integrar no normal devir do quotidiano, essa memória pode ter um claro efeito positivo: "a preparação para a morte, provam-no recentes estudos, torna mais fácil lidar e superar o sofrimento, a morte e o luto dos sobreviventes" (p.14).

4. Carpe diem não é uma injunção que tenha que ter (exclusiva) declinação hedonista – comamos e bebamos que amanhã morreremos -, mas pode ser contemplada pelo prisma moral: aproveita o dia e faz boas obras que a morte está próxima. Na Idade Média, a proximidade com a morte, famílias com muitos filhos e uma medicina longe dos avanços que nos permitem, agora, durar, em média, até muito mais tarde do que então, era manifesta, pelo que a sua força, para uma dada praxis que tivesse em conta a sua preparação – assuntos materiais em ordem, despedida de familiares e amigos, espiritualidade privilegiada – não era negligenciada. O mesmo se diga durante o Ancien Régime: boa morte, considerava-se à época, era ter resolvido os seus assuntos, feito testamento, estar (re)conciliado com a Igreja, acompanhado pelos seus, confortado por orações e sacramentos. Neste contexto, e por outro lado, a morte súbita era encarada como trágica. Assim, podemos falar da existência, à época, de uma ars moriendi, com manuais com instruções precisas acerca do que significava as pessoas morrerem bem.

5. O que em nenhuma época se negará é que na morte vai mais do que o indivíduo: "seres de inter-relação, os humanos não morrem só por eles (ou só neles): os familiares, os amigos, os conhecidos não são meros comparsas no drama de morrer de alguém; são duas pessoas, dramatis personae, como se dizia no elenco das peças teatrais" (p.21). E precisamente concebendo o humano como pessoa, ser de relação, pode cantar-se o amor que vence a morte: "eu sou a tua morte, ó morte". De resto, na senda da Medicina grega, o coração como sede do Espírito.

6. De acordo com Elisabeth Kubler-Ross são 5 as fases por que passa um doente em estado terminal:
*Negação (não acredito, não pode ser), *Rejeição/Revolta (não aceito, é inaceitável), *Negociação (só quero viver até ao Natal, ou até à formatura da filha, ou a um casamento ou nascimento), *Depressão e Aceitação. Se nem todos concordarão com a existência destes estádios, em todos os doentes e com esta sequência, o trabalho da autora, em todo o caso, tem merecido admiração.

7. De entre as questões éticas que se colocam com o recurso aos cuidados paliativos (e a simultânea existência de recursos escassos) estão as seguintes:

– Dado que os recursos são escassos, eles devem ser consignados para os cuidados primários, para os prestadores nos hospitais, ou para apoio ao domicílio?

– Deve dar-se prioridade às equipas que prestam cuidados no domicílio, às instituições dedicadas em exclusivo a esta área, ou aos serviços especializados sediados em hospitais gerais?

– E quanto à nutrição e hidratação artificial, há que mantê-la em todas as circunstâncias?

8. Parece haver um consenso entre eticistas relativamente ao facto de não se dever atrasar, nem acelerar a morte. E de que, portanto, deixar morrer não é o mesmo que matar. Só se pode dizer à família a verdadeira situação em que se encontra um doente (seu parente), com a anuência deste. Em casos de incapacidade, ou inconsciência, aí sim, a questão poderá ser colocada à família de modo imediato.

9. Na perspectiva do Prof. Walter Osswald, "raríssimos se poderão contar [os casos de pedidos de eutanásia] entre os «puros», isto é, racional e reflexivamente decididos" (p.31). Mas, em ocorrendo, considera, os cuidados paliativos não serão, por eles vistos, como uma alternativa.

10. Não são apenas os mais idosos que se encontram em situação de necessitar de cuidados paliativos. Também com jovens, e crianças, encontram-se, não raramente, em tal condição. Ora, de modo especial nestes casos, a pergunta acerca da (eventual) revelação da verdade da doença, a pessoas ainda com maturidade em formação, pode/deve equacionar-se.

11. E quem cuida dos cuidadores? Desde logo, assinale-se, os cuidadores informais- familiares, próximos, pessoas contratadas para o efeito – estão sujeitos ao desgaste pela atenção permanente que deles é requerida, à frustração face à doença que não conhece mitigação, presente nos mais queridos. Necessitam, não raro, de quem cuide deles, e de algum descanso ou compensação (de aí que posições mais extremadas relativas a quem possa incumbir estes cuidados careçam de uma aproximação mais complexa ao problema): "claramente, os cuidadores informais necessitam de quem os acompanhe, os oriente, os ouça e compreenda; mas também de dias de repouso, na forma de pagamento ou de férias, de isenção de trabalho, etc." (p.37).

E, não menos fundamental, a posição dos profissionais de saúde, e com especialização em cuidados paliativos: "é aos cuidadores profissionais que incumbe a tarefa de prestar auxílio aos informais, assim se adicionando mais esta obrigação ética à própria do exercício profissional" (p.37). Os cuidadores profissionais deparam-se, em permanência, com gritos de revolta e desespero, manifestações dos doentes ou familiares, exigência de comunicar a perda, ajudar a fazer o luto…e seguir para o próximo paciente. O entusiasmo, o interesse, a motivação podem ficar em causa. Cada vez mais se fala no burnout (queima) dos médicos, em especial dos mais jovens, pelo que, em tal contexto, se peça muito, e quase paradoxalmente, aos cuidadores profissionais: a partilha da dor e sofrimento sem que esta em si fique inculcada; médicos e enfermeiros têm que "«cuidar-se a si próprios», partilhar os problemas e as dificuldades, recorrer a apoio (…) ser compassivo, mas imune ao sofrimento" (p.37). Um dado mais optimista: um estudo de 2011 mostrou que o risco de bournout nos serviços de cuidados paliativos é baixo. Explicação: as unidades são recentes; foram criadas por profissionais entusiastas; as pessoas que neles trabalham estão animadas de fortes ideais (p.38)

12. Nas diferentes fases/estádios pelos quais passa (pode passar) aquele em que uma doença terminal se instalou, a aceitação é o momento mais demandado: "a aceitação é a fase que aparece como a mais desejável para culminar o processo de morrer: em paz, com serenidade, precedida por interrogações existenciais, a meditação sobre o essencial e o acessório, o efémero e o eterno, o sentido ou não sentido" (p.40)

13. De entre as pessoas que se posicionam, nos debates públicos, acerca das questões que contendem com o fim da vida (terrena), muitas colocam o problema da dor como sendo central à decisão de quem possa decidir pôr termo à existência: "Galeno dizia mesmo que era divino suprimir a dor, atribuindo assim o carácter de dádiva dos deuses à capacidade de tratar as dores" (p.42). Devemos, em este âmbito, ter presente a diferença fulcral entre dor e sofrimento. É que há sofrimento sem dor, e dor sem sofrimento (p.43), isto é, quando falamos em sofrimento referimo-nos a um "mal-estar generalizado; vivência de se sentir ameaçado, com múltiplas facetas: dor, medo, ansiedade, perda de afetos, autonomia sem riscos, alteração da imagem corporal, perda do papel social, de expectativas, de planos, bem como aparecimento de sintomas «humilhantes» (dependência para higiene ou alimentação, incontinência, uso de fraldas)" (p.43). Sendo a dor ultrapassável, em virtude, até, dos meios tecnológicos disponíveis, já quando se remete para o sofrimento, cura-se de registar quanto compete ao cuidador profissional, no dizer de Chochinov, "preservar a dignidade de cada um até ao fim da vida, demonstrando-lhe que a sua pessoa é estimada, honrada, tida como valiosa. Se isto for feito com compaixão, honestidade e benevolência, o doente terminal recupera o sentido da vida (Frankl, 1994) (p.43). Por sua vez, Cecile Saunders falou do conceito de «dor total» (física, espiritual, social, económica). A importância de descentrar da doença a vida do doente: a pessoa está doente, mas não é um doente; há muita coisa importante na sua vida além da doença.

14. É a vontade do doente, é o que a pessoa quer, há que respeitar – escuta-se, ainda a propósito das questões bioéticas que se relacionam com o fim da vida e as doenças terminais. Importa, todavia, assinalar que a autonomia da pessoa que está doente não pode impor-se, nem colocar em causa a autonomia do profissional de saúde; mais, de acordo com Walter Osswald, a centralidade da autonomia, como valor a primar numa escala axiológica, é um constructo ideológico: "a excessiva atenção hoje dada à autonomia individual é de raiz ideológica, provém do Iluminismo, foi exacerbada e é abraçada pelo anarquismo, mas uma antropologia filosófica moderna não lhe reconhece a preponderância que tantos lhe atribuem" (p.47)

15. Suicídio: alta prevalência nos países nórdicos, Mediterrâneo com baixa prevalência; em Portugal, o Alentejo como a região com maior prevalência.
Porque se suicida alguém, que motivações possui para a sua acção? O psiquiatra João Barreto estudou o tema em profundidade e concluiu que 95% dos suicídios ocorrem em pessoas com perturbações psíquicas, nomeadamente de tipo depressivo (p.50). E os restantes 5%? Estes, decorrerão de "um suicídio racional ou consciente ou, como dizem os autores alemães, «à morte livre» (Freitod)? Não se pode excluir que também nestes exista um certo grau de perturbação emocional, de fragilidade frente ao fracasso, à frustração, à perda, à humilhação, à solidão, à desagregação da sua família; mas também é certo que há casos em que a escolha se deve apenas a uma decisão racional e ninguém vislumbra qualquer das motivações acima referidas – seria o caso de quem acha que viveu bem e o suficiente e prefere abandonar o barco antes de surgir a tempestade. Mas mesmo neste caso se poderá argumentar que se não trata de um suicídio racional, já que a motivação provém de um sentimento, o do medo. «Razões da morte, ou morte da razão?», interroga o psicanalista Coimbra de Matos. As decisões não são isentas de cambiantes subjectivas, como demonstrou António Damásio.

Até ao século XIX o suicida, além de condenado como pecador pela Teologia Moral, estava sujeito a severa penalização pelo poder judicial (sanções obviamente só aplicáveis aos sobreviventes de tentativa de suicídio). Com a evolução das sociedades e das Igrejas, a absurda penalização desapareceu e foi-se instalando um clima de aceitação do agente, que não do acto. Este último, admite-se hoje, não é geralmente um acto racional, tradutor da vontade esclarecida da pessoa, reflexo da sua autonomia, antes um sistema de profunda depressão, angústia e solidão. Por isso se entendem como moralmente legitimadas as tentativas de impedir a consumação de uma intenção ou de uma manobra suicida. De facto, o cidadão comum que impede que alguém se precipite de uma ponte ou de um edifício elevado, ou o polícia que desarma o suicida que ameaça matar-se, ou ainda os médicos e enfermeiros que tratam com todos os meios disponíveis os que se intoxicaram com medicamentos, todos esses agentes da conservação da vida não podem ser acusados de ignorarem a autonomia do suicida, porque ela na imensa maioria dos casos não existia, ou não tinha condições para se expressar. Ademais, a correção de atitudes salvadoras encontra a sua confirmação evidente no facto de aqueles que viram goradas as suas perspectivas de morte não só não guardam rancor aos seus salvadores como lhes manifestam gratidão" (pp.50-51)

16. Desde 1935, há na Europa e EUA associações para defesa e difusão do suicídio assistido. Bélgica, Holanda e estado do Oregon (nos EUA) permitem o suicídio assistido. Neste estado norte-americano, os requisitos para o solicitar são: *estar em estado terminal; *requisitar 3 vezes a medida letal; *não sofrer de perturbação psíquica (depressão).
Dados muito reveladores surgiram do estudo desta experiência no Oregon: é raro o pedido para o suicídio assistido; metade dos doentes que solicitaram a poção final, depois não a toma(ram). Por seu turno, vários médicos recusaram receitar tal poção e vários dos que o fizeram não se sentem bem com a atitude que tiveram e propõem-se não a repetir (p.53). A motivação aduzida pelos que pediram tal poção foi: *tornarem-se dependentes ou vir a representar uma sobrecarga para a família.
O que daqui se retira, por um lado, é que não foram dores intratáveis a motivar o pedido de suicídio assistido; por outro, que as causas invocadas podem ser, claramente, removidas e é imperioso, eticamente, que tal suceda. Do ponto de vista ético, o suicídio assistido em nada se distingue da eutanásia.

17. Quando alguém solicita a eutanásia, em todo o caso, a resposta não é abrupta, brusca, um simples não. Não se deve ignorar ou ridicularizar tal pedido, nem mesmo, de "o rejeitar liminarmente" (p.55), antes se devendo "entrar em diálogo franco e respeitoso com o paciente cansado de viver". Em realidade, "estabelecido o compromisso de acompanhar o doente, de lhe prestar os cuidados devidos, de não deixar que ele sofra e de lhe aliviar os sintomas incómodos, os pedidos (que algumas vezes serão apenas solicitações de ajuda) são quase sempre retirados"(p.55).

18. Pós-mortem. Sobre o sentimento de eternidade, Hans Jonas diz-nos que "o sentido moral da pessoa humana (…) e a entrada do absoluto nas nossas vidas (através do inefável do amor e do belo, um olhar à eternidade). «Assim se poderá fornecer uma razão objectiva para justificar metafisicamente aquele sentimento subjetivo de um eterno interesse, que nós experimentamos na voz da consciência, no momento da decisão extrema, na entrega à acção e mesmo no tormento da contrição […] únicos sinais empíricos de uma lado imortal na nossa natureza». Por isso, «podemos pensar numa imortalidade, enquanto dure o curto lapso de tempo da nossa existência velarmos pelo cumprimento dos interesses morais ameaçados e formos auxiliadores do Deus imortal que sofre»" (p.69). E Vargas Llosa: "por maiores que sejam os esforços de intelectuais brilhantes que tentam convencer-nos de que o ateísmo é a única consequência lógica e racional do conhecimento e experiência acumulados ao longo da história da civilização, a ideia de um fim definitivo será intolerável para o ser humano em geral, que continuará a encontrar na fé aquela esperança numa vida para além da morte, a que nunca pode renunciar"(p.71). A concluir, Julián Marías:
"Importam-me muito algumas coisas e sobretudo algumas pessoas. Mas, se no dia em que morrer, que certamente já está próximo, tudo acabar, deixarei de me importar com essas coisas e essas pessoas e então nada tem importância, nada tem última importância. Mas, e se não for assim? Se depois da morte continuarmos a viver? Então não acontecerá apenas que essas coisas e essas pessoas continuarão a ser importantes para mim, mas também durante o tempo que estou neste mundo terei escolhido livremente quem pretendo ser, quem quero ser para sempre. E então, precisamente então, comprometi-me a ser para sempre (e não apenas para um tempo limitado) esse tal que quero ser, esse que me esforço por ser. É então que tudo, concretamente este mundo, tem verdadeira importância: porque estou a fazer, a querer, a dizer algo para sempre".

[a partir de Walter Osswald, Sobre a morte e o morrer, FFMS, 2013]