1. O cidadão comum testemunhou, estupefacto, as mais altas figuras do Estado a celebrar efusivamente a realização da fase final da Liga dos Campeões em território português. Em política, forma é conteúdo, e este, divulgado no ostentoso anúncio, não poderia depor melhor sobre a dessintonia entre as prioridades dos cidadãos e a do aparelho de Estado. Foi angustiante a miudinha articulação para promover a insuperável façanha: o horário que dominou as audiências, a exultação no discurso das partes, até a formação grave, em respeito pela distância social, tudo destramente arranjado para que encarássemos aqueles homens como figuras providenciais, homens ao jeito dos feitos que perduram na memória coletiva. O observador desatento, desafiado a adivinhar, poderia presumir que se anunciava o fim de uma guerra, um armistício, uma proclamação de independência, a liberdade, a derrota de um vírus, sei lá. Mas estaria muito longe de acertar.
Servidas como adorno, duas imbatíveis declarações: o “prémio para os profissionais de saúde”, por um lado, e a promessa de que os portugueses “merecem o que vão ter em agosto”. Estão ambas para além de qualquer serena qualificação. Porém, a realidade não perdoa. Portugal está no olho do furacão: uma brutal crise, tão insidiosa quanto o vírus, alastra sem piedade, matando empresas, estropiando trabalhadores, num rastro destrutivo que empurra a nossa comunidade para tempos de desespero. E se populismo é, por definição, a prática política que se justifica num apelo ao “povo” por contraponto a uma “elite”, na raiz desse fenómeno está o poder político que ignora os problemas e que, por omissão gritante, se abstém de os resolver, elegendo embarcar em perigosos e mentirosos devaneios de “somos os melhores” como justificação bastante para maquilhar aquilo que quem tem os olhos abertos está a ver. Assim também se promove o nós e eles, se oferece campo aberto a quem se alimenta de sentimentos primitivos que florescem em período de incerteza.
2. A talhe de foice, Portugal e Espanha vão reabrir a fronteira terrestre a 1 de julho. Espanha, de antemão, fê-lo ontem com muitos países da zona Schengen, dando uma valente estocada na credibilidade externa de Portugal. Há, pela Europa fora, uma aflitiva e compreensível disputa para cativar turistas, de modo a diminuir as perdas num dos setores mais atingidos pela crise. Portugal está a perder: os cidadãos portugueses estão barrados de entrar num cada vez maior número de países, o que é fatal para a nossa reputação como destino seguro; Portugal não adota medidas para impor a entrada com teste obrigatório na origem; Portugal não consegue celebrar acordos bilaterais para garantir corredores turísticos. Ainda assim, os altos dignitários portugueses, Presidente da República e primeiro-ministro, em conjunto com o Rei de Espanha e respetivo primeiro-ministro, aprestam-se a abrilhantar a cerimónia solene de reabertura da fronteira com o país vizinho. Não tem o Governo espanhol destratado Portugal desde o início da pandemia? Não foi o Governo espanhol que encerrou as fronteiras sem informar sequer as autoridades nacionais? Não foi o Governo espanhol que durante semanas consecutivas, para salvar o turismo, escondeu o número de mortes? Não foi o Governo espanhol que, num ato de deslealdade, depois de acordar com o Governo português a abertura a 1 de julho e de afirmar que a mesma data se aplicaria aos demais países, abriu ontem as suas fronteiras ao espaço Schengen, contribuindo deste modo para a perceção negativa que se abate sobre Portugal e que nos isola no panorama internacional?
Portugal devia dar-se ao respeito.
3. A sul, na costa algarvia, está a nascer uma nova rota de tráfico de imigrantes ilegais, provinda de Marrocos. O Estado está a falhar clamorosamente: os quatro desembarques intercetados só tiveram lugar por denúncias de pescadores. Em nenhuma ocasião, Polícia Marítima ou a Unidade de Controlo Costeiro da GNR, nas suas operações de patrulhamento, detetaram qualquer travessia ilegal. Em dois dos desembarques intercetados, mais de metade dos passageiros estão a monte, sem possibilidade de serem deportados. Quando sob tutela do SEF se evadem, o que os traficantes compreendem é que a rota é bem-sucedida e, por isso, vai prosperar, patrocinada pelo desleixo do Governo.
Sr. Presidente, sr. primeiro-ministro, não percam a compostura, não defraudem os vossos deveres, em nome de uma popularidade fugaz e da irresistível atração pelo frenesim mediático. Este é o tempo, difícil, eticamente exigente, em que sobressaem ou se desvanecem os contornos dos verdadeiros “homens” de Estado.
Deputado