Nuno dos Santos Sousa. Escritos mortalmente secretos

Nuno dos Santos Sousa. Escritos mortalmente secretos


Na ordem do dia, muito antes desses modos de auto-privação que são uma disciplina e um luxo, criou-se o hábito de fingir que nada acontece, sobretudo porque nos isenta de ter de buscar mais perto, até remexendo-se, uma justificação para uma tão miserável apatia. Quando se tornou comum na poesia ir escutando umas profanidades que…


Quase anónimos, tão de rastos na língua, pregando aos convertidos (que é gente pior do que se imagina), não faltam por aí escritos mortalmente secretos, ecos que se incrustam, crescem parasitariamente, brilhantemente, asfixiando a velha vida, propondo uma nova, e somos quase personagens de uma história que ninguém sabe ao certo quem está a narrar. Perdemo-nos nas vozes uns dos outros, suspensos como de uma corda, balançando-nos. No fundo, a toda esta fé falta um credo, mas o seu movimento inseguro permite-nos fugir a todos os compromissos, à responsabilidade e ao dever, alistando-nos como soldados dessas batalhas errantes que cativam os lugares mais frios da terra para logo depois nos escapulirmos munidos de uma farda, todos elegantes.

Na nossa deriva ficam, como uma lista, coisas chamadas alto, rezas a deuses de que gostamos mais por nos parecerem tão improváveis, e trabalhos inúteis, ruínas. Sem um credo, podemos ser levados para os quatro cantos da Terra, mas nunca para o Céu. Capazes de abandonar qualquer destino em troca de uma inspiração que nos deixe ferver num pote uma ideia, deitar-lhe umas ervas, cozinhar aves. Eu vi isto escrito por um aventureiro a propósito de um desses povos de cuja lenda não resta mais que um grão de sal, e este oficial britânico, no início do século passado, falando nas fábricas dos nómadas, reconhece esses povos que eram mais como espasmos, convulsões, ideias, uma raça de génios individuais.

Estou a amalgamar muitas coisas, mas parece-me que assim consigo ser-lhes mais fiel, ouvindo-o descrever uma gente que só cabe em generalidades magnificentes, numas fábulas que não se cansam de nos fugir, povoadas dessas “crianças incorrigíveis perante uma ideia, débeis e cegos às cores, para quem o corpo e o espírito se encontravam eterna e inevitavelmente opostos. A sua mente era estranha e obscura, cheia de depressões e de exaltações, sem regras mas dotada de maior ardor e mais fértil em fé do que qualquer outra no mundo”. Estou a citar T.E. Lawrence na fabulosa tradução que acaba de nos chegar de “Os Sete Pilares da Sabedoria”, numa tradução deleitosa assinada por Marcelino Amaral, e que saiu com o selo da E-Primatur.

Há notícia, entretanto, de que Francisco Vale, o pior dos vizinhos que se pode ter num tão precário condomínio – pois só distingue o ouro pelo brilho na mão daquele que o soube achar –, e logo arranja uma marosca, promove uma confusão com as escrituras, para reclamar a propriedade sobre aquele solo, nem que seja apropriando-se das parcelas adjacentes, este editor que, invejoso da vida que lhe escapa, pretende cultivar um oásis secando os poços ao redor e, assim, condena tudo, também já se lançou à tarefa de reeditar este clássico. Mas não vamos desmontar a composição nem provocar um descarrilamento indo atrás do impulso de lançar o comboio sobre as ventas de um alvo crapuloso.

Retomemos a marcha, homenageando esse que nos foi descrito como “um povo de impulsos, para quem o asbtracto era a mais forte motivação, o processo de infinita coragem e variação, e o fim nada. Eram tão instáveis como a água e, como a água, acabavam por triunfar finalmente”. Que lucro absurdo se safa saltando fora dessas cadeias de nexos, admirando-nos com a precisão de certas descrições que não cabem em si de tão expressivas, e expõem a realidade como uma percepção auditiva que nos puxa para si, um horizonte, um tempo que se liberta de todas as coisas supérfluas e outras complicações, “para alcançar uma liberdade pessoal que a fome e a morte perseguiam”.

Afinal, que descrição mais perfeita de um poeta se pode fazer, que homenagem mais justa, do que a que Borges fez a Lawrence, vincando como aproveitou dos seus árabes o notável desprezo pela vida, o seu ascetismo, negando sono e comida ao seu corpo e as suavidades do afecto à sua alma varonil, o que não tornou muito complicado, depois, que se recusasse à gloria e até ao prazer do exercício literário. E isto porquê? Para poder saber mais das coisas em que a humanidade não toma parte: “aquela lenta respiração que tinha nascido algures, para lá do distante Eufrates, e tinha-se arrastado durante muitos dias e muitas noites, percorrendo o seu caminho sobre as ervas mortas, até se lhe deparar o primeiro obstáculo, as paredes feitas pelo homem do nosso palácio em ruínas”.

Mas a notícia era outra. A de um díptico, estreia de Nuno dos Santos Sousa, que há um ano, por esta mesma altura, fazia uma edição de autor, assinando apenas Nuno, à mão, bem como o título da obra: “Livro de Visitas”. E basta isso, porque se supõe que os exemplares terão sido entregues em mão ou expedidos nesse regime que tão raramente se tem aproveitado da lição de Luiza: “Não podendo falar para toda a terra direi um segredo a um só ouvido”.

É uma estreia terrivelmente discreta, e que quase empurra a nota crítica para um efeito de absurdidade, dando nota de uma existência que vive nessa margem da alegria que é retrair-se voluntariamente, vindo, assim, arrancá-lo (mesmo que infimamente, levando só o seu rumor a uns poucos mais ouvidos) à sua abnegação e renúncia. Além de páginas dobradas, indicações de leituras onde se afiou o lápis (porque tudo neste caderno, desde as dimensões, à paginação, bem miudinho, admite muito cedo a hipótese de ser um objecto fácil de se pousar nalgum sítio e perdê-lo para sempre), os tão furtivos sublinhados com que vamos esgarçando uma récita até dela sobrar alguma senha, um modo de se estar na companhia que mais nos exige, além disso, logo o segundo o poema tem para título um “Adeus”. Eis a segunda estrofe: “Quem de nós coragem teria/ descerrar as janelas do teu quarto final/ cheio do labor cardíaco de cada fruto/ cheio do sabor cardíaco de cada furto/ dos passados distantes e passivos”.

É um defeito triste nesta terra ver como tantos, simulando aquele desprezo notável pela vida, acabam dando sinais de um desespero de serem reconhecidos, e abunda nas notas dos amigos essa forma de justiça grosseira que acaba por trocar esta alegria maior de saber a quem nos dirigimos, podendo assim formular de forma mais perfeita, mais aguda este grito de morcego, com o seu alcance de 360 graus ao redor, um grito que, como lembrava Joseph Brodsky, funciona, não só como um desejo de falar para dentro de alguém, mas de estabelecer uma técnica de radar, contando as existências, o que é importante, pois, como nos diz Borges na epígrafe deste poema de Nuno dos Santos Sousa: “Quando o fim se aproxima,/ já não restam imagens da lembrança;/ só restam as palavras.”

Há qualquer coisa que nos diz que a vida se despede de nós, e que tudo quanto indagam os nossos sonhos, tentando restituir alguma ordem a estas parcelas que não formam já unidade alguma, na hora em que se guarda alguém com amor, se lhe perguntam, ao poeta, num sonho: “Onde a conheceste?” Ele responde: “Não aqui. Na vida.” Estranhamente, a vida desta geração foi-se tornando a sua quimera.

Noutro poema, também na segunda estrofe: “Há sempre um quarto para repousar o corpo/ de tanta verdade que atormenta./ Talvez a arte seja a arte disso.” Já não é uma arte de perder o que exige de nós um certo domínio, mas um desejo de se ver livre do mundo, que nos cerca e asfixia, que está presente em demasia, exigindo-nos um recuo. Eis uma possível estratégia: “Não podemos pedir muito./ Um quarto de tudo chega/ um quarto para tudo o que/ não cabe/ no coração.”

Estes são dos versos mais sensíveis, mais directos, mais jovens que se têm escrito entre nós. Apaziguados para lá das cerimónias da ironia e do sarcasmo, dos regimes da pose que servem para que uns e outros se reconheçam como membros de uma clique, a qual tem feito da poesia outra triste câmara para o registo “social”. Como dizia o escritor espanhol Carlos Ruiz Zafón, a quem o êxito libertou da observação de conveniências e afectações literatas, o mundinho literário tem uma composição curiosa em que 1% é literário e 99% é mundinho. E se todos pagam aziagos juros nesta caixa de esmolas, para pagar de vez um funeral ao defunto, depois, veja-se quão raros são aqueles que mostram ter ombros para o carregar ou braços e forças para o confiar a uma última morada.

Em dedo na ferida, fica aqui um poema na íntegra, que chama Albano Martins (poeta que tão poucos dos jovens leram e ainda menos chamam seja para o que for) para a epígrafe – “O amor também cansa”: “Fizemo-lo pela cultura,/ Fizemo-lo pelo país, pelos governos, pela igualdade/ pela insegurança social e por uma arte subsidiada/ fizemo-lo com a raiva do amor que não temos/ na esperança de fazendo o alcançarmos.// Engoliste, líquida, o meu cansaço,/ liturgia das Horas tardias./ É uma hermenêutica interventiva fazer/ urgente e subversiva e, porém,/ também ela complacente/ com o desmazelo de assim se fazer gente.”

Por graciosa e convincente que esta estreia se mostre, não está isenta de arroubos pífios, de versos que, isolados ou em fraca companhia, cumprimentam essa tendência popularizada por alguns desses a quem faz jeito que a poesia dê o seu arroto, o que, na cena de um funeral, sempre funciona como uma unção entre os que ainda estão convencidos de que alguma subversão possa vir de largar por aí uma praga de poemas de um só verso, mesmo que seja uma frase partida em quatorze pedaços, julgando que goza com o soneto, ou, e talvez pior, andar a brincar às japonesices, a apalpar ai-cus a torto e a direito. Assim, vamos vendo sucederem-se poemas de um só verso, caídos na página com aquele ar atraganado de um turista que entra pelo templo a roer uma perna de frango e, ao terminar, a deposita na pia baptismal. Não se trata de ofender os fiéis; antes fosse isso. Simplesmente, há muito que não sentimos aquele nó deslaçar-se no que nos resta do peito com um “ama como a estrada começa”. E talvez só funcione, à laia de comentário a esse, o apontamento gracejante que nos serve aqui o autor com este “O herpes é só a curva na estrada.” Seja como for, não falta nestas páginas, por cada enlevo rudimentar, alguma forma de penitência que logo nos desfaça as dúvidas sobre o comprometimento deste jovem poeta, mesmo quando o poema, em vez de um verso, se serve de dois, cruzando mais a perna: “É difícil ser-se mulherengo/ quando se é a mais insegura das mulheres.”

Entre os voos que o radar dificilmente irá registar, conta-se uma passagem junto à torre da “Divina Comédia”, e se o “Inferno” condenaria o poeta justamente a um círculo para ofensas um tanto inanes, vale a pena destacar o “Purgatório”: “Mentalmente estendeste as culpas/ que recolheram pela noite/ molhadas de álcool e ansiolíticos./ A ferro engomavas as ideias/ como uma mãe/ delicada no mais pequeno gesto.// Nas gavetas, desordenaste tudo a gosto/ que toda a desarrumação me é querida/ porque barroca.”

Trata-se de uma estreia firme, ainda que lhe falte aquele grau de ambição que hoje, de tão ausente na poesia portuguesa mais recente, começamos a sentir-lhe a falta como de pão para a boca, sendo que cada vez menos se espera nela encontrar um sustento que, por fim, nos retire a barriga de misérias e faça jus ao incitamento de Natália de que a poesia possa ter essa urgência. Faltando isso, aquilo a que não temos sido poupados é a divagações etílicas. E neste capítulo, Nuno serve-nos um verdadeiro shot: “Álcool como cera que/ retarda o arder do pavio.”

O livro prossegue e não seria difícil ir rabiscando notas à margem de cada uma das suas páginas até que a madrugada nos perdesse, sendo rendidos já de manhã por essa espécie de funcionários que lêem hoje a poesia como quem trata de uma inspecção sanitária, pondo cruzes em caixas, avaliando propostas tendo como base um depressivo regime de planeamento urbano. Aqui, felizmente, mesmo o que já se viu antes tem o despojamento de um virar de costas, uma fuga que até nos faz esquecer, mesmo que por instantes, essas capitais da solidão a que hoje nos vemos confinados.

“Percorremos os móteis todos./ As estradas os bares os bordéis. Num carro/ azul como o azul deveria ser.// Haurimos noites nas esplanadas que o mar deixou para ti.// E não é que numa dessas vezes/ perdemos o amor como quem se esquece do casaco/ e só dá por isso quando faz frio./ Estávamos submersos e ainda tínhamos sede.” A anterior referência a um título de Rui Pires Cabral não se estranha tanto depois de lido este poema, e há outros onde sobra no fim um resto, uma cinza que, se mexida com os dedos, lembra vagamente o que foi o coração, antes deste ter sido empurrado para fora do prato. Felizmente, aos poucos ainda volta. Vai fazendo a sua tentativa de recuperar algum espaço, nem que seja no agradecimento murmurado num livro de visitas onde o desejo se cumpriu contra o resto, essas banalidades que empertigadamente se disfarçam de poesia. Enquanto assim for, não é de estranhar, como nota o poeta, ver como “caem os versos pelas sarjetas”. “Abram-se as portas da decepção:// Finis Gloriae Mundi.”

Já no segundo livro do díptico (“Le Mot”, chama-se o primeiro, e “Ave-exausta” o segundo), o primeiro poema, encabeçado por um verso de Cesariny – “Eu, de luto para luto, fico mais criança.” –, não só se guia bem pelas estrelas, como, cá em baixo, sabe fazer-lhes um sinal de presença: “O Poeta tem três mãos./ a direita/ a esquerda/ e a outra com que escreve,/ sob o ordenante cálamo de Deus”. E quando tanta morte, e muitas vezes num relevo tão mesquinho, assoma ao poema, como um rei velho peidando-se no trono, dá gosto ler um gesto menos gratuito a remexer na gaveta do desgosto: “Apaticamente comovido com tudo,/ o meu rebanho é também as sensações e contudo/ entreguei-as por sacrifício ao deus que mais por elas deu.// Como é triste ler poesia sabendo que se morre.”