A tristeza na criação, ou o cuidado de si


Cuidar-se cuidando é não só um paradoxo como um perigo.


Já aqui escrevi acerca da magia da criação. Agora escrevo sobre a tristeza na criação. Ou, melhor, na vida dos criadores, que não conseguem para si a magia que constroem nas suas obras (nem poderiam, claro, que a vida só imita a arte em slogans para papalvos) e acabam, quiçá, por não suportar isso nem conseguir com a obra (seja mais triste ou menos, mais mágica ou não) sublimar as mínguas e a sensação de vida vivida como uma soma de desilusões e faltas. O que dói tanto mais quanto maior for a fome de magia, de além, de superação. E escrevo-o agora não sei bem porquê, embora sempre exista, entre o id e o ego, alguma coisa, uma razão; e em cada dia da nossa vida, com maior ou menor consciência, oscilamos entre as ilusões perdidas do título de Balzac e aquele vital – e muito metafórico, e quimérico, claro – desejo de Dostoievski de ver a Europa enquanto ainda possuía força, paixão e poesia. Aliás, o escritor acabou por fazê-lo, mais de dois meses fora da Rússia. Mas sabemos se lhe serviu de muito, afinal? Fugazmente, talvez. Que podemos nós saber, em boas contas, para além das operações aritméticas simples de subtrair desapontamentos às ilusões e de somar, com empenho, vários momentos de satisfação? Sabemos muito pouco. Contudo, saber isso e, também, compreender aquela aritmética é já saber muito, ou talvez tudo, pelo menos para evitar acabar como os exemplos que se seguem.

Emilio Salgari criou para os outros sonhos belíssimos, mas para si próprio pouco ou nada, e acabou esventrando-se num bosque de Turim. Virginia Woolf escreveu algumas das melhores páginas da literatura mas, cheia de pedras nos bolsos, acabou imergindo no rio, incapaz de suportar sabe-se lá o quê. Hemingway deu-nos pessoas bravas e lutadoras, mas com uma arma de caça estoirou a cabeça. Et cetera. Devemos-lhes tanto, a estes e a outros, deram-nos muito. Mas a si mesmos, o que conseguiram dar, e o que lhes deram os outros, ou o que conseguiram eles tirar dos outros? Não o suficiente, pelos vistos.

Será que é de tanto darem aos outros que não encontram o suficiente para si? Ou será que é por não saberem dar a si que podem dar tanto e tão bem aos outros? Que sabemos nós sobre isso? Embora saibamos – quando não mesmo por experiência própria – que cuidar muito do outro costuma ser sintoma de cuidar menos de si. Cuidar-se cuidando é não só um paradoxo como um perigo, porque quem cuida muito quer preencher com isso alguma coisa essencial que lhe falta e quer também o reconhecimento pelos outros do seu cuidado, mas esse reconhecimento, mesmo quando existe, nunca basta, nunca sacia. Não necessariamente por ser pouco, mas porque ele não chega para dar o que não pode: o gosto de si. O gosto de si ou há ou não há, e não são os outros que no-lo dão; o gosto ou, melhor, o cuidado de si (por acaso, ou não, o título quase profético do terceiro volume de uma obra maior de Foucault, que é sobre mais do que aquilo que aparenta).

Mas obrigado, Emilio, obrigado, Virginia, obrigado, Ernest. Et alii. Deram-me e dão-me mais do que alguma vez poderia retribuir, mas tudo o que pudesse retribuir, eu e outros milhões, nunca vos bastaria, nunca vos chegaria. Era talvez preciso que gostassem mais de vós mesmos, que se bastassem mais a vós mesmos. Mas, se assim fosse, nunca teriam – quem sabe? – criado tanto e tão bem. Triste paradoxo, ingrata dádiva. Se o cuidado dos outros se sobrepõe ao cuidado de si, o criador falha a si mesmo, mas é superlativo para os outros. Dar aos outros é uma maravilhosa dádiva que, muitas vezes, emerge de uma falha profunda em quem dá. Dar é uma superação, mas nunca chega, nunca é mais do que tentativa. Até ao dia, o dia de uma lâmina, de um punhado de pedras ou de uma espingarda. Salvo, talvez, se aprenderem, mesmo que em serena resignação, bastando-se, a arte nobre e vital da aritmética simples.

 

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