É porventura o espetáculo de artes circenses e acrobáticas mais conhecido do mundo e opera como uma roda gigante, em simultâneo, um pouco por todo o lado. Mas o futuro do Cirque du Soleil escreve-se por linhas cada vez mais incertas e o desaire da bancarrota não está excluído dos cenários. E, em torno da hipótese de falência, há empresas que começaram a posicionar-se para lucrar com os despojos, avançou o New York Post no mês passado.
Por partes: a queda do Cirque du Soleil, detido por fundos privados e que tem sede em Montreal, no Canadá, começou a desenhar-se pouco depois de o mundo parar por causa da pandemia, com a companhia a anunciar que iria colocar em layoff 95% dos trabalhadores, ainda em março. A companhia, que emprega cinco mil pessoas, tinha no início desse mês 20 espetáculos em digressão mundial. Com o adiamento dos espetáculos agendados para os meses seguintes veio um duríssimo golpe para uma empresa que, apesar de ter crescido nos últimos 20 anos e de ser uma referência no setor, não estava em plena forma financeira. Aliás, longe disso. Segundo escreveu o El País, o Cirque do Soleil possuía uma dívida de 815 milhões de euros há cinco anos. Esse valor, a juntar ao dinheiro agora perdido devido ao surto de covid-19 – só em reembolso de bilhetes dos espetáculos adiados vai ter de gastar cerca de 150 milhões de euros –, atirou a companhia para o precipício.
Numa tentativa de salvar a icónica empresa, um dos marcos culturais canadianos, o governo do Quebeque, injetou-lhe cerca de 200 milhões de euros no início de maio. Os proprietários também adiantaram um valor de 50 milhões de euros na mesma altura. Mas a soma dos dois valores não é suficiente para fazer face à dimensão do problema.
Pouco depois de as notícias virem a público, o bilionário Guy Laliberté, ex-proprietário e cofundador da companhia – que tinha vendido o negócio em 2015 –, afirmou que estaria disposto a injetar dinheiro para salvar o seu “bebé”. Laliberté, que pôs de pé o Cirque du Soleil em 1984, vendeu a maior parte das suas ações por cerca de 1,5 mil milhões de euros em 2015, tendo reduzido a sua participação de 90% para 10%. O projeto foi então transferido para os investidores que o detêm atualmente: o fundo privado norte-americano TPG Capital (que tem 55% do negócio), o fundo chinês Fosun (25%) e a Caixa de Seguros e Pensões do Quebeque, uma instituição público-privada que detém os restantes 20%. Agora, na iminência de ver o projeto desfeito, Laliberté, de 60 anos, decidiu juntar-se ao resgate do Cirque du Soleil “depois de uma cuidadosa reflexão”. Contudo, deixou a ressalva de que a “recuperação terá de ser feita novamente pelo preço correto, e não a qualquer custo”, disse à imprensa canadiana. Também o grupo de comunicação social canadiano Quebecor manifestou o desejo de injetar capital para salvar o Cirque du Soleil, mas tal não vai acontecer para já, porque acusa a administração do Cirque du Soleil de não revelar as verdadeiras contas da empresa. A administração defende-se afirmando que a pressão da Quebecor não passa de uma tentativa de desvalorizar as ações da empresa para depois a adquirir por um preço mais baixo.
“Ganância” O processo será, como se vê, bastante complicado. E a falta de transparência apontada aos fundos que detêm a companhia é apenas um dos problemas em cima da mesa. Segundo o Post, nos bastidores já começaram as negociatas. De acordo com o jornal norte-americano, logo a 30 de março, a TPG Capital, sócia maioritária do Cirque du Soleil e que tem sede no Texas, terá transferido a “maioria das suas marcas para uma entidade totalmente nova”. Logo no dia seguinte, o Cirque du Soleil não cumpriu o pagamento de juros da dívida de 815 milhões de euros, abrindo assim caminho para a falência.
Imediatamente após estes acontecimentos, a TPG Capital, a Fosun e a Caixa de Seguros e Pensões do Quebeque – os detentores das ações da companhia circense – injetaram de emergência os tais cerca de 50 milhões de euros para, alegadamente, salvar o circo. Só que este valor foi emitido para a nova unidade da marca registada para a qual a TPG acabara de transferir os negócios. Ao Post, fontes conhecedores do processo afirmaram que a medida “reforçou instantaneamente o estado de falência”. Como acionista, a TPG teria de, caso não tivesse feito esta transação, apoiar forçosamente os credores existentes no caso de uma falência.
“Ganância, é o que é”, disse um advogado especialista em reestruturações ao jornal norte-americano, questionando ainda os acionistas “sobre o direito de transferir um ativo dos credores à beira da falência”.
Enquanto as tropas se posicionam, os trabalhadores permanecem, por ora, serenos. “Continuamos otimistas. A empresa, até ao momento, não cancelou espetáculos, apenas adiou os que estavam agendados para os próximos meses”, afirmou Mateo Amieva, um dos artistas da companhia, ao El País.