Eva é uma personagem. Eva é Cristina Branco. Eva é o novo álbum da fadista que, acompanhada pelos músicos Bernardo Couto (guitarra portuguesa) e Bernardo Moreira (contrabaixo), e Luís Figueiredo (piano), e com letras de diversos autores, como Márcia, Filipe Sambado, André Henriques (Linda Martini), Filho da Mãe, Jorge Cruz, Kalaf (Buraka Som Sistema) ou Peixe e Nuno Prata (Ornatos Violeta), Pedro da Silva Martins e Luís José Martins (Deolinda), usam esta personagem para "exortar os demónios e convocar a razão de quem já não está para se esconder atrás de nada".
Mas deixemos a cantora de Almeirim explicar pelas suas próprias palavras.
Primeiro, o contexto:
Pode ler-se num diário de 2006, “O que é a liberdade? O que é que consideras como verdadeira liberdade?”
Eva nasceu nas páginas desse diário como uma leitura alternativa à personalidade de Cristina Branco, como um alter-ego. Eva é uma artista que criou o seu próprio universo moral, sem sombra de arrependimento e que não sente necessidade de aprovação de ninguém. Daí, quase 15 anos depois, achei pertinente trazer a lume esta inquietação do ser livre, do ser social e manter a mente aberta, e que me levou a pensar no quanto o corpo feminino é um lugar de resistência neste tempo e de que tanto deste disco é sobre isso mesmo, sobre o quanto os nossos corpos conseguem suportar nesta era de absurdos e convulsões sociais sistémicas.
Depois foi olhar para tudo isto e perceber que não havia coincidências entre esses dias de 2006 e o meu ano de 2018, inicio de 2019, foi perceber que padrões se estavam a repetir e que a melhor forma de me libertar, em vez de me fechar outra vez sobre uma folha de papel, seria a de exortar os demónios e convocar a razão de quem já não está para se esconder atrás de nada, nem de um diário negro desse ano de 2018 e excertos de dores em copy paste. Tudo isso resultou numa vontade de mandar à fava ideologias bacocas e subterfúgios estilísticos mais ou menos assumidos. Então aparece Eva, uma mulher em colapso com o arquétipo da femme fatale e segura de que tudo está ainda em aberto para fazer aquilo que bem entender, sendo que esta (a Eva) também sou eu!
Depois foi pegar nesta ideia e transmiti-la aos autores, a vários, muitos. Resumi tudo em 10 temas porque bastava para a história que eu queria contar, depois foi cadenciar a narrativa, juntar as partes e perceber qual o caminho a fazer.
Sabia que desta feita era importante tirar toda a gente do conforto da vida quotidiana (sendo que, o que é quotidiano para um músico?) e propus à rapaziada rumar a outros destinos para o brain storming, para sobretudo percebermos que som queríamos para esta Eva. Fizemos Loulé e Copenhaga. A primeira para descentralizar, que já vem sendo um princípio nos meus trabalhos, depois Copenhaga, ou melhor, Louisiana, ou melhor, Museu de Arte Moderna na Dinamarca, onde nasceu o diário da Eva Houssman, em 2006 numa outra residência artística. Bernardo Couto, Bernardo Moreira e Luís Figueiredo e eu fizemos e pensamos na sonoridade que queríamos para que este diário se transformasse num disco. A Joana Linda filmou e fotografou tudo, documentando para a vida o momento em que a Eva se materializou. Esta é a minha verdadeira liberdade, cantar, idealizar e criar.
As faixas:
Delicadeza (a elegância de ser frágil e que já não se deixa dominar pelas vozes de uma sociedade bacoca, alguém que não aceita que lhe digam o que pensar!) As vozes masculinas são o desmoronar daquele estereótipo do “macho”.
Prova de esforço (a vida dá muitas voltas, é uma verdadeira prova de esforço e o Pedro da Silva Martins comparou esta evidência ao facto de eu fazer jogging numa base quase diária).
Quando eu quiser (às vezes não sei onde vou, mas o principal é tentar lá chegar, a esse sítio que não sei exatamente onde fica).
Mau Feitio (este é um exercício constante sobre evolução de carácter. É defeito ou é feitio, isto de não conseguir dormir, será defeito ou é feitio?).
Contas de multiplicar (O corpo humano é um lugar de resistência e um presente da natureza. Esta é definitivamente a canção que aproxima Eva da imagem primordial, fecunda, da mulher).
Conta-me dos vivos (um vaivém de cartas e escritos sobre a dúvida presente no amor, sobre a impermanência).
Maria (é de carácter sensível, é uma crente de certa forma agarrada aos seus sonhos, como se vivesse numa realidade onírica, um mundo paralelo. Maria comove-se com as coisas mais simples da vida).
A doutora (é um penso rápido numa ferida permanente).
Inferno do céu (a tentação e todo a conceptualização que daí advém. O que vai no pensamento de uma certa freira lasciva e burguesa, um mundo de pensamento pecaminoso. Mas o que é o pecado, afinal?)