A escalada da estupidez


Sem estarmos numa pandemia de estupidez, estamos com focos de contágio que exigem os adequados cordões sanitários, num misto de tolerância com a diferença e salvaguarda do interesse geral.


A estupidez humana localizada é uma inevitabilidade. Faz parte dos riscos do crescimento da criança e, por vezes, por falta da educação adequada, da ausência de interiorização do bom senso ou da falta de caráter, esgueira-se na triagem civilizacional e atinge a maioridade, acompanhando o espécime ao longo da vida. Por ser localizada, não é uma inevitabilidade comunitária, sendo uma parte do todo que tem de merecer a adequada tolerância, desde que não ultrapasse linhas vermelhas da lei ou do compromisso social não escrito. Mesmo sem vacina, por via da educação, do senso e do conhecimento, a maioria está imune à estupidez, mas há risco de contágios de circunstância.

Sem estarmos numa pandemia de estupidez, estamos com focos de contágio que exigem os adequados cordões sanitários, num misto de tolerância com a diferença e salvaguarda do interesse geral. Os sinais acumulados, ao longo dos últimos anos, de intolerância com a diferença, numa dialética entre os quadros antigos e as novas abordagens ao passado e ao reajustamento do presente, somam-se agora à importação aditivada das contestações, dos radicalismos e da generalização das situações de desequilíbrio, sem ter em conta a causa das coisas e a ausência de vontade para as transformar.

Nos últimos anos, com base em situações de injustiça social, de discriminações e de expressões inaceitáveis de desigualdade, a partir de casos concretos, emergiram movimentos que defendem a releitura do passado, dos acontecimentos históricos e das suas circunstâncias à luz do conhecimento, das perspetivas e dos padrões atuais. Já não nos bastavam os que reescrevem a História enquanto ela está a acontecer, através de narrativas de sustentação, por vezes sem nexo com a realidade, agora também teríamos os que reescreveriam a História à luz da atualidade – num acerto de contas com o passado, com um deve e um haver que implicariam consequências que afagariam as consciências, mas não resolveriam nenhum dos problemas estruturais essenciais de acesso a bens fundamentais, a condições de desenvolvimento ou ao reforço da coesão das comunidades.

Há na história da humanidade crimes e práticas hediondas, na Europa e em muitos pontos do mundo, que podemos avaliar com base no conhecimento e nos critérios de avaliação do nosso tempo, embora em todas as épocas tenha havido pessoas, minoritárias ou marginalizadas, que divergiram das opções gerais de então. Há na história recente exemplos de delapidação de património autóctone que não foi impulsionada por nenhuma entidade exterior aos territórios, ou será expetável que o esbulho que aconteceu em Angola com a família Dos Santos e de que Portugal beneficiou em registo de investimento estrangeiro venha a ser imputado aos Descobrimentos? E o mesmo se poderia questionar em muitas outras latitudes em que as explorações do tempo moderno são concretizadas pelos autóctones, amiúde com beneplácitos internacionais. Estas realidades imperfeitas, inaceitáveis sob o ponto de vista do desenvolvimento das comunidades e de uma visão redistributiva da riqueza, convivem bem com os espasmos de quem sistematicamente procura rotular Portugal como uma sociedade imperfeita a partir de casos e de exemplos concretos, sem nunca ir à essência estrutural das coisas.

Ao longo de mais de quatro décadas de democracia, quantas vezes as opções políticas, sustentadas maioritariamente, foram no sentido de responder às necessidades de quem estava mais ou menos dentro do sistema, mas nunca em favor dos que estavam à margem ou em manifestas rotas de divergência. Se a opção é repor rendimentos à função pública ou acorrer às necessidades reiteradas dos bancos, isto é, responder ao sistema, a margem para centrar atenções em quem não o integra é reduzida, seja na habitação, na geração de oportunidades de integração, na valorização da diversidade cultural ou até no combate às incivilidades. O problema é que as opções políticas estão centradas sobre si próprias, sobre o sistema, o que exclui trabalhar as realidades dos bairros desestruturados, das famílias destroçadas, dos crescimentos na rua e de tantos outros fatores de revolta e de risco para a realização individual e a coesão comunitária. Por opção política de prioridades ou de exiguidade de recursos, acabam por perpetuar-se os fatores negativos. E vão surgindo expressões dos desequilíbrios, cavalgadas por forças políticas e partidárias em sentidos diversos, como está a acontecer a partir da morte de George Floyd, em escalada de estupidez.

Outra deriva, com resultados similares, é a de uma certa opção assética da sociedade em que, de acordo com padrões de titulares de cargos públicos ou de setores próximos desses poderes, se procuram consagrar perspetivas minoritárias em prejuízo do todo, sem ponderações relativas de valores, ou se tentam impor à comunidade questões de gosto pessoal, de moda ou de novas tendências de uma alegada modernidade – a deriva da ditadura da desinfeção social do que é divergente dos padrões alegadamente em voga. Os sinais de intolerância governamental em relação à tauromaquia, em total contradição com a matriz ideológica do Partido Socialista, expressos e reiterados em vários momentos, são o catalisador para expressões inaceitáveis de destruição de património comum, como aconteceu com a vandalização de uma obra de arte urbana do artista VILE que representa a praça de touros vista do Passeio Ribeirinho de Vila Franca de Xira. Esta, como a pintura da estátua do Padre António Vieira, é expressão dos sinais e das permissividades que têm sido alimentadas pelas opções políticas, pelas ausências de conforto para o cumprimento da lei e de outras derivas de relaxo quem em nada contribuirão para a resolução das questões estruturais.

Respeitar a diferença é combater tudo isto nas causas e ser implacável com quem, para afirmar um ponto de vista, quebra o compromisso social de pertença a uma comunidade.

Na escalada da estupidez dos últimos dias não houve uma palavra de condenação das principais figuras do Estado. É disso que se alimentam os radicais, os populistas e os fabuladores de realidades idílicas como a da reescrita do passado.

 

NOTAS FINAIS

É PARVO. Querer afirmar um ponto de vista pela destruição do que é de todos.

É RIDÍCULO. Querer reescrever o passado sem escrever, de forma consequente e tolerante, o presente.

 

Escreve à segunda-feira