Em 1976, o escritor bósnio Izet Sarajlić escreveu um poema intitulado “Carta ao ano 2172”: “O quê?/ Ainda escutam Mendelssohn?/ Ainda apanham margaridas?/ Ainda celebram os aniversários das crianças?/ Ainda põem nomes de poetas às ruas?/ E a mim, nos anos setenta de há dois séculos atrás, asseguravam-me de que o tempo da poesia já havia passado – tal como o hábito de trocar prendas, ou ler as estrelas, ou os bailes em casa dos Rostov./ E eu, pateta, quase acreditei neles!”.
A poesia parece confundir-se com a própria razão da persistência das coisas ou, pelo menos, com a sua melodia. Para quem não está por dentro dos regulamentos da sociedade dos bibliófilos – organização não propriamente secreta, e que nem chega a ser uma instituição, mas algo mais como uma seita difusa que une essa gente metida pelos livros dentro, a qual, através dos seus hábitos, dá corda a um mecanismo que acerta um tempo próprio –, causa espanto que os livros de Herberto Helder atinjam desde há algumas décadas valores exorbitantes entre a “poeira difícil dos alfarrabistas”.
Pode parecer que o tempo da poesia já passou, mas, na verdade, ele tem é outra medida, e escapa aos desatentos. Trata-se de “um nó veloz, parado, como feito no tecido doloroso da atenção”. Mesmo assim, as razões porque os livros de Herberto, para lá da questão da raridade de alguns, se foram revestindo de uma certa aura, não são tão obscuras que não possamos, em parte, explicar o fenómeno. É que do mesmo modo que, em 1968, o autor anunciava que ia deixar de escrever, e mesmo que o não tenha cumprido, foi fazendo da sua promessa ao silêncio um longo noivado. E o silêncio, por paradoxal que possa parecer, é para este ofício cantante o compromisso final. Ora, a par do fascínio que produz nos leitores a comparação da escrita às artes criminosas pelo poeta, os seus livros não eram apenas um vulgar rasto de papéis, mas as provas dessa paixão exemplar: “o meu amor abrange crime, solidão e silêncio, como se fossem uma só coisa: um limite, espécie de milagre ou extremo exemplo”, lê-se em “Apresentação do Rosto”.
Sempre que na sua obra o livro nos surge, mais do que objecto ou imagem, este sugere um signo, está envolvido de um poder ritual, e às vezes é uma sagração: “Um dia começa a alma, e um caçador atinge/ a cabra fremente no flanco/ com uma flecha viva./ Cantamos devagar o espírito dos livros./ E brilha toda a noite, no sangue espesso e maduro do bicho/ maravilhoso, o dardo do caçador.” Ou veja-se este exemplo em que ressoam os célebres versos de Mallarmé: “a carne é triste e perfeita/ como um livro”. E este: “E estás em mim como a flor na ideia/ e o livro no espaço triste.” Ou este outro: “Os próprios meses ressoam como espelhos ardentes,/ como telhados, cúpulas, livros,/ como objectos ardentes.” E para terminar: “E o espírito de Deus como num livro/ movia-se sobre as águas.”
O que estes versos ilustram é um respeito muito particular pelo livro, pelo acto da leitura. De resto, um sinal disso mesmo se recolhe na reportagem que Herberto assina a 4 de setembro de 1971 para o semanário Notícia, de Luanda, com o título “O Gozo da Literatura” (reunido em abril de 2018 no volume “em minúsculas”, numa edição da Porto Editora). Ao ver um rapaz a ler “metido pelo livro dentro, com uma atenção pelo menos ‘feroz’”, ele enfatiza essa visão, dizendo que “quase se via a matéria do livro a ser absorvida pelo cérebro, o cerebelo e o bolbo raquidiano, passando depois para o corpo todo”.
Ora, o que não falta são exemplos de que Herberto comungava dessa forma de júbilo diante dos livros como ecos fulgurantes de uma memória desconhecida, e se a dimensão quase aristocrática de certos livros não deixou de o impressionar, normalmente essa condição fica a dever-se à sua raridade, a uma aura de secretismo, que os resguarda da atenção miserável e dos descuidos dos turistas, ocupando as recâmaras ou caves das livrarias, a cripta das relíquias, alguma estante com vitrine. Mas para que um livro atinja um valor que dele faça uma verdadeira preciosidade, o seu poder de mito terá já sido alvo de uma longa discussão entre os leitores, que o elegeram como objecto de perseguição. Se um exemplar de “Cobra” não se compra por menos de 250 euros, no caso de conter algumas das alterações feitas à mão por Herberto (e estas alterações variam muitíssimo de exemplar para exemplar, entre aqueles que foram oferecidos e dedicados pelo autor aos amigos), pode chegar a milhares de euros. Um exemplar de “Flash”, folheto editado pelo autor, com a ajuda da sábia mão de Vitor Silva Tavares a garantir o acerto gráfico, livro que não teve circulação comercial e que se restringiu a 250 cópias, dificilmente se compra por menos de 1000 euros. Já os livros que saíram com selo da Guimarães, “Húmus” e “Electronicolírica”, também não custam menos de 300 ou 400 euros. E "O Amor em Visita", folheto com que Herberto se estreou, em 1958, na Contraponto de Luiz Pacheco, pode ir dos 800 aos 1500 euros.
Mas até mesmo as primeiras edições de livros como “Photomaton & Vox” ou “Os Passos em Volta”, bem como as sucessivas reuniões da sua obra, chegam a valer algumas dezenas de euros, ou seja, vão bem à frente do regime geral da inflação. Estes preços justificam-se não apenas por boa parte dos livros de Herberto não terem sido alvo de reedições mas, sobretudo, por a obra ter sido sujeita a uma constante e, por vezes, furiosa reescrita. Isto acabou por conferir a cada edição a sua autonomia, a sua inscrição no tempo. E dificilmente alguém defenderia que as correcções ou supressões que fez apenas serviram para desbastar mato. Boa parte delas são arriscadíssimas. Ou, por outras palavras, o lixo de Herberto Helder seria o tesouro de muito poeta de segunda.
E “Apresentação do Rosto”, que agora, e por decisão da viúva, Olga Lima, acaba de se reeditar, mais de cinquenta anos depois da edição original, mais de trinta depois de o livro ter sido definitivamente afastado da bibliografia pelo autor, é bem o exemplo disso. São inúmeros os fragmentos que foram reapreciados e salvos nos vinte anos que passaram até que o livro fosse definitivamente renegado. E, mesmo depois disso, houve obras posteriores, como “Do Mundo” (1994) e “A Faca Não Corta o Fogo” (2008), onde o autor ainda andava de volta da matéria que o atingira na carne daquele que é tido como o seu livro mais autobiográfico, o de 1968.
Assim, mesmo que a opção por uma reedição sem mais de uma obra renegada, sem nenhum prefácio em que os critérios da decisão assumida exclusivamente pela viúva sejam explicados, e isto quando, cinco anos após da morte do poeta, parecem ser os cálculos editoriais o que adquiriu maior relevo, mesmo assim, seria um absurdo pôr em causa quer a qualidade literária quer o interesse de “Apresentação do Rosto” até como objecto de estudo face à restante obra de Herberto Helder. Razão pela qual a maioria dos leitores, que não tinham meios para pagar centenas de euros por um dos raros exemplares que sobreviveram à apreensão da PIDE nem tanto interesse que o tenham fotocopiado na Biblioteca Nacional, estarão gratos por esta edição.
Mesmo que se esqueça o papel que os alfarrabistas tiveram, em anos recentes, ao fazer disparar o preço dos livros mais recentes do autor, açambarcando dezenas ou até centenas de exemplares logo que estes chegavam às livrarias para os venderem pelo dobro e o triplo do preço semanas depois, quando já se encontravam esgotados, mesmo assim este é um caso que interessa aos bibliófilos sobretudo por comparação com todos esses livros de poesia que não aguentam tiragens superiores a 300 exemplares ou até menos que isso. Livros que, alguns anos depois e em segunda mão, descem até valer a mesma coisa que um despojo ou um pedaço de lixo, e ficam por aí nas feiras e nos saldos, a exibir os sinais do desapreço dos leitores.
E que tristes coisas os livros sabem ser, com aquele ar desgraçado com que vestem o desprezo e o reviram em culpa, dividida entre todos, um dedo apontado a um país, uma época… Diz-se que “os livros têm voz e falam salvando épocas e vidas” (Irene Vallejo), mas a culpa do seu desprestígio deve ser cada vez menos atribuída aos leitores e cada vez mais assacada aos autores e editores. Durante demasiado tempo o desinteresse dos leitores, a iliteracia (ou o “analfabetismo secundário”), a falta de apoio dos programas de educação serviu de bode expiatório para uma 'indústria' que se tem dedicado a uma política de terra queimada, em que todos os agentes contribuem para que a tinta seja largada sobre o papel sem observar grandes escrúpulos por um objecto que era antes pensado para consumir várias vidas humanas, conferindo-lhe uma morte cada vez mais breve, mais inútil e desesperada. E isto sem qualquer fé num Além, na possibilidade de ressuscitação que os livros sempre oferecem se puderem ser colhidos por um novo leitor.
É por isso que, ao contrário das loas que se tecem em nome de todos esses que, pela simples virtude de andarem metidos no negócio dos livros, se acham investidos de uma espécie qualquer de nobreza, se julgam os cruzados de uma forma antiga de resistência, o que há é que responsabilizá-los pela desvalorização e desprestígio a que os livros cada vez mais estão sujeitos. A este propósito vale a pena lembrar uns versos de Vitor Silva Tavares, editor que nunca deixou de lado a função crítica dos livros, essa que obriga agora a dizer algo nestas linhas: “B A BASTA!/ Desterremos estes olhos/ abjectos dejectos!// Virgem putíssima/ a Paisagem Deslumbrante/ escancara a vulva/ à brigada internacional/ das Novas Visões”.
Nem que seja em nome das tantas árvores ingloriamente abatidas, é bom que se façam distinções, e que o papel em que os livros são impressos traga um grito que nos alerte para essa diferença. Parafraseando o editor de forma bastante livre, estes devem lembrar-nos que aqui rescalda, esquenta, um campo havido, e espera-se, assim, que quem parte leve fantasmas, ao passo que a quem fica cumpre ir imitando a morte obsessiva dos outros, mesmo que a invente, essa forma cantabile da demência – morrer a compasso. Soltar-se, meter-se no ovo de um sentido sem demasiada paciência para o mundo, esse que é a desilusão de tantos. Aqui, secretamente, a guerra alastra, e a tinta no papel é uma outra forma de derramar-se, perder tantas vidas. Só assim se honra os grandes editores, aqueles que se confundiram com o silêncio nesse esforço de elevar a palavra, fazendo de conta que a espreitam paraísos. De resto, o que há é uma fuga, um desandar entre o vómito e o uivo, esse talento com que se desterra os olhos, se põe entre vírgulas, perfeitamente dobrada, passada muito a limpo, uma extensíssima visão: eis aí a nobreza que resta, como se espalham os nossos ossos entre espantos e descobertas, como cada um desenha o seu mapa, esperando que os vermes o livrem da carne, dos abjectos dejectos, dormindo o sono insoletrável, para despertar enfim, e voltar à leitura, entrando com o maior decoro na eternidade.