A poética do amor copia a realidade e canta as dificuldades que o movem. Na versão em prosa recordo pela excelência “Os amores difíceis” de Italo Calvino, publicados em colectânea em 1970 (de que há edição portuguesa pela D. Quixote) cuja primeira parte homónima recolhe treze contos obrigados ao mote “a aventura de um…” (só dois narram as aventuras de “uma”, uma banhista e uma esposa). Calvino conta as dificuldades de cada circunstância e faz-nos perceber que os desencontros entre amantes (ou candidatos a tal condição) fundam a relação amorosa, mais interessante do que o amor fácil. A esmagadora maioria dos “amores difíceis” de Calvino foram inicialmente publicados entre 1949 e 1959 e decorrem no ambiente social e económico da Itália do pós-guerra. Que faria Calvino com as dificuldades amorosas suscitadas pela pandemia?
O uso da máscara é um dos objectos de eleição do poder normativo. Para uma percentagem significativa da população mundial (superior a 51%, logo maioritária de acordo com o critério democrático) existe um interdito para o não uso de máscara em público de acordo com uma religião abraçada por um quarto dos habitantes do planeta. Par contre, na maior parte dos Estados existem interditos contra o uso de máscaras em público, fora de ocasiões festivas socialmente aceites, e que não permitam a identificação dos mascarados. Estes interditos do uso da máscara não se limitam ao interior das agências bancárias, das assembleias de voto, dos estabelecimentos prisionais ou às salas de exame das universidades, incluem, em muitos Estados da União Europeia, a via pública.
A pandemia, por via normativa, veio baralhar os interditos e estabeleceu, por defeito e em Portugal, o uso da máscara em espaços públicos fechados. O Carnaval permanente complicou a comunicação entre os humanos. Não só a que recorre ao sentido da vista para identificar o outro e atribuir-lhe uma categoria (amigo, inimigo, homem, mulher,…) mas perturbou a fala (entaramelando-a, não há – ainda – aulas para projecção de voz com uma máscara a tapar a boca e a diminuir a função do palato). Do ponto de vista do combate à discriminação baseada nos estereótipos atingiu-se um grau de sucesso que recomenda o uso da máscara até que soem as trombetas do Apocalipse.
À escala dos indivíduos, esses desmancha prazeres que insistem em existir e contrariar a perfeição de todas as teorias que propugnam a boa organização social, a solução mascarada suscita algumas dificuldades. O que não se vê só se adivinha. O que mal se ouve menos ainda. Os confessadamente optimistas tendem a não desperdiçar as dificuldades. A máscara introduz no relacionamento amoroso uma mão invisível que faz descer um véu de ignorância facilitador da passagem a uma forma superior de luta. A máscara inverte a narrativa de Calvino: mascarados os amores são mais fáceis, sem discriminações baseadas em género, raça, cor, orientação sexual, beleza física… Esta igualdade mascarada promete facilidades amorosas, deixa via livre à imaginação e às promessas. As dificuldades surgem com o cair da máscara.
Para além do propalado combate à pandemia há razões imperativas de facilitação da busca da felicidade amorosa que impõem o uso da máscara. E estas razões obrigam ao uso da máscara em espaços públicos abertos mas também em espaços privados fechados (“e outros” como bem lembrou recentemente o legislador lusitano). Esta boa razão recomenda o uso permanente e não meramente social da máscara. Na solidão em frente ao espelho cada indivíduo deve usar máscara não vá, inopinadamente, ver-se.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990