Uma grande aula de John Searle

Uma grande aula de John Searle


Composto a partir de dez palestras, Da Realidade Física à Realidade Humana é um resumo do pensamento de John R. Searle, um dos maiores filósofos vivos.


O norte-americano John R. Searle é um dos maiores filósofos contemporâneos vivos. Os seus livros publicados entre nós estão quase todos esgotados: Os actos de fala: Um ensaio de filosofia de linguagem (Almedina, 1981), Mente, cérebro e ciência (Edições 70, 1987), A Redescoberta da mente (Piaget, 1998) e A Intencionalidade: um ensaio de filosofia da ciência (Relógio d’Água, 1999). Julgo que só se arranja o segundo nas livrarias. Acaba de sair Da Realidade Física à Realidade Humana, que tem o n.º 39 da colecção “Filosofia Aberta”, iniciada por Desidério Murcho em 1995 e hoje conduzida por Aires Almeida, na Gradiva, a editora dirigida por Guilherme Valente, ele próprio formado em Filosofia. Fala-se muito dos livros da “Ciência Aberta”, mas devia-se também falar dos livros da “Filosofia Aberta”, cujos autores incluem Simon Blackburn, Harry Frankfurt, Nelson Goodman, Roger Scruton e Peter Singer, para além de clássicos como John Stuart Mill e Lev Tolstói (sim, o romancista, que foi também um teórico da estética).

Searle, com 88 anos, foi professor na Universidade de Berkeley, Califórnia, e tem ao longo da vida recebido vários prémios e distinções. Também teve dissabores, o último dos quais foi a acusação de assédio sexual há três anos por uma sua jovem assistente, que deu azo a que a universidade lhe retirasse o título de “emérito”. É em vão que se procura pelo seu nome nas páginas web do Departamento de Filosofia da Universidade de Berkeley. Mas isso não diminui o mérito da sua longa obra filosófica, que incidiu sobre temas como os actos de fala e a linguagem, a intencionalidade e o sentido, a consciência e a inteligência artificial, a racionalidade e o livre arbítrio, e a construção da realidade social e da civilização. Pois todos esses temas se encontram tratados no seu livro mais recente.

É uma grande aula, um grande resumo do seu pensamento, com a ênfase nas suas contribuições para a Filosofia. O autor passou a escrito as dez palestras, tantas quantos os capítulos do livro, que deu em 2015 na Universidade de Girona, na Catalunha. Os vídeos estão na página Web da universidade catalã. O filósofo, que fez as conferências sem apontamentos, estava, a avaliar pelo vídeo, em excelente forma física e intelectual, 60 anos após o seu doutoramento em Oxford. O título não engana: Searle parte da realidade física, feita de electrões e protões, para chegar à realidade humana, onde há consciência e instituições. Não tem papas na língua sobre o seu propósito: “Quero que se veja que, dado que temos electrões, é provável que acabemos por ter eleições, dado que temos protões, é provável que tenhamos presidentes” (p. 18). Por outras palavras: Searle é um naturalista, que não tem dúvidas de que todo o social é natural. Ele afirma que a estranheza que alguns sentem perante esta conexão vem da grande influência do dualismo cartesiano, que separou a mente do corpo, considerando a mente, que na época se chamava a alma, um dom de Deus. Para Searle esse é um erro filosófico que leva a vários outros.

 E Deus? O problema de Deus é resolvido por Searle logo na Introdução do livro em poucas linhas (p.12): a religião só faz sentido se Deus existir, mas se Ele existe (Searle não acredita) então faz parte da Natureza. Isto é, não apenas o social é natural, mas também o sobrenatural o é.

Homens e máquinas Para Searle, a “consciência, a intencionalidade, a racionalidade, a ética, a estética e outras coisas mais fazem parte da natureza” (p. 19). E continua: “a consciência é um fenómeno biológico comum.” Mais à frente: “A consciência está para o cérebro, grosso modo, como a digestão está para o estômago. Ninguém pensa que há um problema metafísico profundo acerca de como o estômago digere – limita-se a digerir – mas pensa-se que há um problema metafísico profundo acerca da consciência” (p. 50). Searle desmancha na segunda palestra, em cinco minutos (poucas páginas), a teoria computacional da mente, ou inteligência artificial forte, segundo a qual é possível criar um computador consciente. Expõe o seu famoso argumento do “quarto chinês”, que remonta a 1980. Uma pessoa que não sabe nada de chinês está fechada dentro de um quarto a receber de fora símbolos chineses. Insere-os num computador, que fornece respostas, e envia estas para fora. O computador funcionou como um ser inteligente para quem está de fora, mas para a pessoa dentro não existe qualquer significado: Ter uma sintaxe – um algoritmo – não significa ter uma semântica. 

Nas respostas às questões da audiência, que aparecem transcritas no final de cada capítulo (e que são das partes mais interessantes do livro), Searle é claro: “Os seres humanos são máquinas, portanto não há nenhum contraste entre homens e máquinas. Isso é um resquício do cartesianismo” (p. 85). Ele não vê problema nenhum, de princípio, em fazer máquinas artificiais e até em fazer um ser humano artificial, mas não pode ser um programa de computador porque este não tem semântica. O supercomputador Deep Blue não ganhou a Kasparov num jogo de xadrez, porque um computador não tem consciência. As máquinas, pelo menos as actuais, não têm consciência para poderem jogar com humanos. A computação não é pensamento consciente e, segundo o filósofo, o jogo de xadrez exige esse pensamento. O que a máquina faz é uma simulação de jogadas de xadrez, que aparenta ser inteligente para um observador. Para Searle, as máquinas comportam-se, portanto, como se fossem inteligentes, mas a inteligência delas é toda ela relativa ao observador e não intrínseca. Apetece-me ripostar que se arranha e mia como um gato, podemos dizer que é um gato, mas eu sou físico e não sou filósofo. 

Na palestra 4, sobre a questão da intencionalidade, Searle desfaz o que ele chama um dos “piores erros da história da filosofia”, o argumento, sustentado por nomes assaz respeitáveis, de que o real não passa de ilusão (p. 227): “Estamos num dos maiores desastres na história da filosofia, em que decidimos expulsar-nos do mundo real e entrar no mundo do Geist”. Como sou físico, estou com ele: o real é real. Se bater com a cabeça na parede dói mesmo e não tenho apenas a ilusão da dor causada pela ilusão da parede.

Na palestra 7, sobre a “ontologia da civilização humana”, o autor começa por dizer: “Devemos ficar espantados por haver animais a correr de um lado para o outro na superfície da Terra, e depois alguns começaram a falar entre si”. Mas, para ele, mesmo antes da linguagem, “aprenderam a cooperar. Desenvolveram a intencionalidade colectiva. E isso revelou-se crucial para a sobrevivência dado que pela intencionalidade colectiva, pela cooperação, os seres humanos conseguem fazer coisas que não conseguem fazer sozinhos” (p. 209). A sociedade precede a linguagem, embora tenha sido exponenciada por esta. Apesar do surgimento da fala ser algo incrível, esta teoria parece-me crível.

O autor, que gosta muito de exemplos pitorescos, fala, no final da palestra 7, dos economistas neo-liberais de Chicago, que o convidaram a dar um seminário, e dos “cães maravilhosos” que foi tendo ao longo da vida. Aqueles economistas equivocam-se, segundo ele, quando pensam que as pessoas agem apenas numa “base egoísta” (p. 223). Eles poderiam pensar que Searle, por desejo egoísta, queria ir ter com eles às margens do lago Michigan. Mas a verdade é que ele foi lá não porque simpatizasse com eles, nem porque o tempo em Chicago fosse bom ou porque lá se comesse bem, mas sim por mera obrigação profissional. As pessoas também fazem o que consideram ser as suas “obrigações”, algo que os seus cães pura e simplesmente nunca fizeram. Aí está uma distinção entre humanos e canídeos em que eu nunca tinha pensado.

Depois de ter dissertado ao longo de 300 páginas, resolvendo algumas questões mais profundas que têm preocupado as maiores mentes, reconhece que há certas coisas que ainda não compreende. Na palestra 10, admite não compreender o livre-arbítrio: explica a questão, que é antiga, mas não a resolve. Já antes, no final da palestra 8, tinha afirmado que a criatividade e a imaginação são questões da biologia, mas que ele também era incapaz de compreender. Dá um exemplo gastronómico: “Quando uma pessoa olha para o menu do restaurante e tem de decidir entre a vitela, o peixe ou o porco, tem de imaginar como seria se trouxessem a vitela, o peixe ou o porco. E então a pessoa forma um desejo com base na imaginação” (p. 250). Imaginamos as realidades alternativas, que se podem concretizar ou não. E podemos mesmo imaginar realidades virtuais, inconcretizáveis, embora não saibamos o mecanismo da imaginação. De modo que o propósito do título fica um pouco incompleto, como aliás convém num livro filosófico. Consegue-se saber, pelo menos até certo ponto, de onde vêm eleições e presidentes, mas não de onde vêm a criatividade e a imaginação. Por mim tiro a conclusão de que a arte – que exige imaginação e criatividade, como aliás a ciência – está para além da política…

‘Obcurantismo terrorista’ É um livro bastante divertido, que dá prazer ler. Quais foram para mim os passos mais divertidos? Assinalo dois. No final do capítulo 2, em resposta a uma pergunta sobre a possibilidade de a Internet nos estar a tornar robôs, diz que não faz ideia nenhuma do que os seus estudantes andam a fazer no Facebook. Comenta: “Nunca vi um Facebook, portanto não sei o que é isso ou por que razão estão tão entusiasmados com isso” (p. 90). Sugere, com alguma candura, que o tempo gasto no Facebook poderia ser mais bem aproveitado a ler a Crítica da Razão Pura ou Proust. É uma boa sugestão, mas receio que seja tempo perdido propor aos jovens essas alternativas às redes sociais.

E outro passo divertido é quando Searle fala da sua polémica com o filósofo pós-moderno francês Jacques Derrida, o autor da ideia da “desconstrução”. Pois Searle desconstrói Derrida em duas palavras: limita-se a citar um outro filósofo francês, Michel Foucault, que chamou ao estilo do seu compatriota “obscurantismo terrorista” (p. 259 ) Em francês soa mais fino: “obscurantisme terrorriste” (p. 259). Obscurantismo porque não escreve de modo claro e terrorista porque, quando lhe colocavam alguma objecção, dizia sempre que não tinha sido bem compreendido, uma táctica de resto muito usada pelos pós-modernos. Nunca admitiu que ele próprio podia ter sido mais claro. Pode-se concordar ou discordar de Searle, mas não se pode dizer que não é claro. Insurge-se não apenas contra Derrida, mas também contra outros praticantes do obscurantismo. Acha, por exemplo, Freud confuso: “As perspectivas de Freud são mais loucas que as da maior parte das pessoas” (p. 302).

Aqui está um livro que expõe pedagogicamente alguns dos grandes problemas da filosofia, salpicado com exemplos muito terra-a-terra. Este leitor agradece ao autor da colecção, pela escolha do título, à tradutora, Daniela Moura Soares, pela qualidade da tradução na nossa língua do original muito recente da Harvard University Press (saiu em Outubro nos Estados Unidos e em Março já estava em português!), e ao revisor científico, Desidério Murcho, incansável divulgador da filosofia em Portugal e no Brasil. Vale a pena ler esta obra, pois é um estimulante testamento intelectual de um filósofo que sempre demandou a claridade.