O direito de manifestação e os seus limites


Se é legítimo que os cidadãos expressem publicamente a sua indignação por um crime brutal, já não é aceitável que o façam através de apelos à violência.


Dispõe o art.o 45.o da Constituição que os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização, e que a todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação. Esses direitos podem, no entanto, ser limitados no quadro do estado de emergência, nos termos do art.o 19.o da Constituição, e foram efectivamente limitados nos decretos que o decretaram. Na última versão, constante do decreto do Presidente da República 20-A/2020, de 17 de Abril, o seu art.o 4.o e) determinava, em relação aos direitos de reunião e de manifestação, que “podem ser impostas pelas autoridades públicas competentes, com base na posição da Autoridade de Saúde Nacional, as restrições necessárias para reduzir o risco de contágio e executar as medidas de prevenção e combate à epidemia, incluindo a limitação ou proibição de realização de reuniões ou manifestações que, pelo número de pessoas envolvidas, potenciem a transmissão do novo coronavírus”.

Com o fim do estado de emergência no passado dia 3 de Maio, o Governo determinou a aplicação do estado de calamidade, nos termos da Lei de Bases da Protecção Civil, apesar de o art.o 21.o, n.o 2, b) dessa lei apenas prever nessa situação, em relação a estes direitos, “a fixação, por razões de segurança dos próprios ou das operações, de limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas, outros seres vivos ou veículos”, o que dificilmente pode implicar uma suspensão parcial do direito de manifestação. Apesar disso, no entanto, o regime anexo à resolução do Conselho de Ministros 33-A/2020, de 30 de Abril, que decretou o estado de calamidade, determinou no seu art.o 18.o a proibição da realização de celebrações e de outros eventos que impliquem uma aglomeração de pessoas superior a dez, que só poderia ser autorizada em situações justificadas (art.o 18.o). Posteriormente, o art.o 5.o, n.o 1 do regime anexo à resolução do Conselho de Ministros 40-A/2020, de 29 de Maio, que prorrogou o estado de calamidade, estabeleceu que “na Área Metropolitana de Lisboa, o acesso, circulação ou permanência de pessoas em espaços frequentados pelo público, bem como as concentrações de pessoas na via pública, encontram-se limitadas a dez pessoas, salvo se pertencerem ao mesmo agregado familiar”.

Sucede, porém, que no passado sábado se assistiu em Lisboa a manifestações envolvendo milhares de pessoas, em protesto contra o brutal assassinato de George Floyd na América. Sendo este tipo de concentração sem as necessárias distâncias de segurança manifestamente proibido pela disposição acima referida, torna-se claro que a tentativa de restrição pelo Governo de direitos fundamentais através do regime do estado de calamidade não apenas é manifestamente inconstitucional como também corre o sério risco de se revelar totalmente ineficaz para efeitos de combate à propagação do vírus.

Há, por outro lado, um limite imanente ao direito de manifestação que é o de que, através do mesmo, não se pode incitar à prática de crimes, podendo ser interpretadas nesse sentido algumas das mensagens surgidas na manifestação do passado sábado. Não é efectivamente aceitável que se recorra a manifestações para apelar à prática de crimes, sendo tal actuação absolutamente contrária ao espírito do direito de manifestação, que se caracteriza precisamente pelo seu carácter pacífico. Se é legítimo que os cidadãos expressem publicamente a sua indignação por um crime brutal, já não é aceitável que o façam através de apelos à violência.

Estes tempos de pandemia estão a ser extremamente críticos em relação à protecção dos direitos fundamentais e à resolução dos conflitos pela via pacífica. É, por isso, essencial a total reactivação do nosso sistema judicial em ordem a garantir que a protecção dos direitos das pessoas seja por este plenamente assegurada.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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