A Campânula de Vidro, de Sylvia Plath, ed. Relógio D’Água
Há lá coisa melhor que ficar apanhado logo nos primeiros capítulos de um livro? Tão bom quando nos sentimos completamente apanhados, emaranhados numa história, que mesmo que nunca pudesse em momento algum ser a nossa, lhe descobrimos sempre laivos de algum desassossego que só a nós pertence.
Se no início do livro farejamos qualquer alegria e indício de glória, rapidamente sentimo-la desabar. Esta alegria e excitação da personagem principal irá diluir-se num tempo disforme alheado de tudo e de todos, vincado por uma brutalidade colérica.
Os sonhos e a alegria desmoronam num ápice e, se virmos bem, os sonhos e o seu desabamento facilmente se imiscuem entre si. No fundo este é um livro sobre a multiplicidade do ser humano, no fundo todos somos múltiplos, desviantes, uns mais do que outros. É um livro no osso, duro e áspero. É um livro onde se conhece à séria uma mulher no seu mais profundo estado de desânimo e inquietude e, talvez, só assim se possa conhecer verdadeiramente alguém.
É na leitura que na maior parte das vezes sentimos uma parte de nós se diluir na pele de alguma personagem, de alguma reminiscência nossa, de qualquer aurora.
Pois bem, é assim que me senti ao ler Sylvia Plath em prosa: a diluir. Nela, a prosa parece estar sempre mergulhada não só na poesia, mas na própria cabeça que, sem parar, a toda a hora se retalha, cose e descose e, por não parar, quase enlouquece. A frase mestra de todo o livro a meu ver é esta (pag.58) «Um bom poema vale mais que 100 pessoas juntas.» Nada mais certo.
São muitas as imagens poéticas a adensarem a noção de desvio e em especial a que mais me terá agarrado foi a simbologia da figueira que condensa mais ainda essa ideia de dualidade e descaminho. A figueira é desde sempre uma árvore repleta de sentidos. Rómulo e Remo nasceram debaixo de uma figueira, a figueira era a árvore favorita de Buda, no antigo testamento as folhas da figueira surgem como cinturão da nudez de Adão e Eva, enquanto que no islamismo a figueira significa a dualidade esplêndida da natureza.
Esta figueira fez-me recuar a uma dedicatória que o poeta José Tolentino Mendonça me fez há muitos anos numa conferência sobre Adília Lopes: “Para a Rita que o poema seja sempre um caminho fácil”. Eu parto desta dedicatória num poema e respondo-lhe, a esse sábio Viajante do Sono, que no meu poema o caminho nunca será fácil, porque das três uma, ou é porque se calhar eu não quero que seja fácil, ou eu não o deixo ser fácil ou como a Sylvia Plath nunca descobrirei caminho nenhum. O caminho até pode ser por vezes fácil, mas desejar-me tortuosa e áspera, ou ser fácil e esperar que eu derrape para depois me dar uma segunda oportunidade, mas no meu caminho os fantasmas, esses aprendi a deitá-los atrás das costas, ao contrário de Plath que toda a vida viveu atropelada por eles, pelas suas sombras e vozes. O que a maioria dos viajantes desconhece é que são os fantasmas e os espinhos que iluminam o bom e o mal, as silvas e os figos.
A Poesia pode ser o figo mais doce, mas também o são as silvas no fim do caminho. Prefiram os figos mais mirrados e secos ao sol, porque são os que se demoram mais na boca.
Essa noção de transviamento neurasténico traduz um duelo violento quase sempre estonteante entre a vigília e o limite, fazendo com que o leitor também se sinta tenso, numa fístula onde a custo respira.
O limite e as dilacerações interiores de Plath conferem a este que foi o seu único romance de carácter auto-biográfico uma força sombria temível, já revelada na sua poesia quando escreve, em poemas como Ariel, «Negro, doce sangue na boca, /Sombra, / Um outro vôo /Me arrasta pelo ar… /Coxas, pêlos; /Escamas e calcanhares. /Branca /Godiva, descasco /Mãos mortas, asperezas mortas. /E então/ Ondulo como trigo, /um brilho de mares. /O grito da criança /Escorre pela parede. /E eu /Sou a flexa, /O orvalho que voa, /Suicida, unido com o impulso /Dentro do olho /Vermelho, caldeirão da manhã.» ou em OS MANEQUINS DE MUNIQUE «A perfeição é terrível, não gera filhos./ Fria como o hálito da neve, ela tapa o útero/ Onde os teixos sopram como serpentes, /A árvore da vida e a árvore da vida./Desprendendo as suas luas, mês atrás de mês, / sem nenhum propósito./ O jato do sangue é o jato do amor, / O sacrifício absoluto./Quer dizer: mais nenhum ídolo,/ exceto eu/ Eu e tu.(…)» Mas a sua tortura interior não se esgota somente nestes dois exemplos, estende-se antes, por toda a sua obra, como em Três Mulheres poema a três vozes, em que Plath vai de frente ao encontro dessa multiplicidade do seu forro íntimo. Em Três Mulheres assistimos a uma tensão iriante entre os três elos femininos entrelaçados na sua própria personalidade em conflito. Três auras que se estendem juntas na mesma tolha num dia de temporal na praia com algumas abertas. Umas vozes acabam por sossegar outras, como o sol entre os relâmpagos. Três vozes muito contraditórias entre si, que se traduzem em variações desarmónicas da mesma Sylvia. Constantemente dilaceradas numa tensão dramática, segundo Ana Gabriela Macedo no prefácio ao mesmo livro(p.13) «A poética de Plath substancia-se na ambivalência, na dualidade, na tensão constante entre afirmação e contradição, oscilando na metáfora de «enclausuramento versus libertação» (de novo comum na estética feminista), exemplarmente significada nessa proliferação de eus e de vozes que dizem e projetam neste poema as imagens e os fragmentos da escritora e da mulher (Esposa/Secretária/Jovem)».
A ideia de “sacrifício absoluto” em Manequins de Munique ou de “impulso” em Ariel é um duelo na maioria entre antigos eus, presentes eus e eus desenfuturados. Ás vezes todos certamente damos por nós a pensar nos antigos eus. Como é que a antiga Rita, Luísa, Eduarda seria se ainda continuasse a ser a antiga, mas alegra-me pensar que se dentro da minha cabeça existe uma ou duas antigas Ritas, na cabeça de Pessoa existiam Álvaros, Ruis, Albertos, nunca pior.
Esta luta entre a vigília e o limite, o constante desejo pela libertação através da morte fez-me recuar à infância e lembrar uma prima de quem sou íntima, mas nem tão próxima quanto desejaria, porque as nossas vidas a certa altura graças aos desvios, transvios, descaminhos, tiveram que tomar diferentes trilhos.
Essa prima, tal como Plath tinha tanto de frágil, como de perseguida e revoltada e aos dezassete anos tentou-se suicidar, tal como numa das tentativas de Sylvia Plath relatadas no livro.
Escrevo este episódio agora sem o mínimo dos traumas, mas porque me lembrei imediatamente da cena. Era Páscoa, a Ana estava na casa de banho ao lado da copa, deve ter sentido os meus passos no corredor. Eu vinha carregada com os pratos para a cozinha. Éramos sempre as mais novas que levantávamos a mesa. Quando a senti chamar-me pousei os pratos na arca e quando dei por mim, já estava fechada dentro da casa de banho com ela. Tinha uma lâmina numa mão e o desespero noutra. Eu já lho conhecia em outras frentes, (como já conhecia o desespero de Plath na poesia) nas nossas distâncias mal medidas pelas lutas de bonecas ou de framboesas, nos pequenos ódios, mas também nas noites em que dormíamos juntas agarradas na mesma espera do dia seguinte. Quando vi a lâmina fiquei aterrada. «Vou-me matar e tu vais ficar a ver» disse-me. Na minha falsa serenidade, não me lembro de que palavras me servi para acalmá-la, mas lembro-me de não lhe mostrar pânico nenhum. Estou a ver a lâmina e o sangue no lavatório. O lavatório tinha um espelho redondo e lembro-me de nunca me olhar no espelho. Eu própria não queria reconhecer o medo e o susto nos meus olhos, embora me sentisse ferver e pulsar dentro deles. Sei que a Ana só cortou um dos pulsos e de repente abriu o trinco da porta com o pulso enrolado na grossa toalha de algodão e como mensageira de um milagre me deixou fugir. Assim, feita mensageira me escapuli e respirei de alívio. O suicídio que na verdade é a espiral do romance, é um tema que realmente me é bastante familiar, mas nem assim se pode considerar uma narrativa depressiva, visto ser calibrada de ritmo, amor, autoconhecimento.
Recordando agora o meu episódio pessoal e as tentativas da narradora em pôr um fim à sua vida, facilmente consigo fazer outra ponte. Na altura em que foi internada no segundo hospital psiquiátrico, ao abrigo de uma escritora consagrada mais velha, Plath olha-se ao espelho e deixa-o cair ao chão, ficando todo partido em cacos, ao contrário de mim que apavorada ao ver a minha prima com a lâmina na mão, nunca cheguei a mergulhar no espelho os meus olhos em redoma.
O tom confessional que percorre o romance chega a ser devastador e corrosivo, mas se nele se vislumbra a atracção sublime do abismo, também nele se celebra a natureza transbordante de uma alma sensível, inquieta e atormentada.