A confiança é dos sentimentos mais voláteis que existem nas relações e nas comunidades, podendo anos de construção serem destruídos num ápice.
A confiança na República assenta na relação que se estabelece com os protagonistas políticos de turno e com as instituições que, com legitimidade democrática direta ou indireta, são responsáveis por assegurar a superação do efémero, posicionando-se num patamar mais perene. São ou deviam ser, no fundo, o garante da sustentabilidade. Este exercício deveria pressupor a existência de valores e princípios que seriam projetados na narrativa, na ação concreta e nas dinâmicas sociais, reforçando a relação democrática, a solidez das soluções e o sentido de sintonia entre as necessidades e as respostas. Infelizmente, proliferam os sinais de degradação da relação de compromisso com a República e do sentido de sustentação da confiança.
É claro que a república do desenrasca está em grande. Os protagonistas ajudam. A aquiescência geral conformada com os resultados aprecia. A opacidade, a incoerência e a ausência de critério na formação das opções políticas modelam-se em função das conjunturas, com entorses na aplicação dos princípios e valores presentes no ideário e tantas vezes enunciados sem consequência prática. A república do desenrasca é a que está presente quando se enuncia a reversão da privatização da TAP para que o Estado mande, mas não manda; quando se recorre a nível de informalidade no exercício político que sinaliza a ausência de regras para atingir determinados fins; ou quando a coerência política tem a consistência da gelatina, havendo sempre uma justificação para o injustificável. A república do desenrasca é resiliente até ao beco sem saída. Achata curvas pandémicas enquanto não chegam os ventiladores da China porque o SNS não dispunha deles; compatibiliza os objetivos com Bruxelas e o apoio da frente de esquerda para opções de governação; e concretiza diversos impulsos sólidos na criatividade, mas frágeis na sustentabilidade, que nem o mais ousado MacGyver conseguiria. Em democracia, a República é o que os protagonistas e os cidadãos quiserem. E têm querido pouco. Algum dinheiro no bolso, algum folclore nos exercícios e muitos resultados formais, sem consistência material. É claro que o contraste com o passado é sempre um elemento facilitador. Qualquer exercício efetivamente democrático é preferível a qualquer expressão da ditadura do Estado Novo, embora a tentem branquear, numa perigosa deriva entre a loucura e a falta de rigor. Qualquer governação com um sentido de devolução e de alegado reforço dos direitos, liberdades e garantias é mais apreciada que uma de perfil contrário em que se tinha juntado a fome com a vontade de comer em matéria de contenção, suspensão e degradação dos padrões de vida. O contraste, a visualização de cenários muito negativos e a escolha de segmentos a beneficiar em detrimento de outros são sempre opções possíveis de governações sem critérios estruturantes, sem escrutínio e com défice de explicação. Explicar não é desenrolar desculpas esfarrapadas, mas fundamentar atempadamente o que se pretende fazer, o que se faz, quais são os objetivos e os resultados obtidos. Quase nada disso existe e o desenrascanço instala-se. A República, nas suas diversas expressões, não se dá ao respeito e os cidadãos não o exigem.
O problema é que a ausência de senso, de critério e de explicação é geradora de falta de confiança na República. Somos avessos ao risco, mas ele existe. Somos incapazes de planear, o que dificulta a reação em emergência. Somos jeitosos a desenrascar, o que dificulta a coerência e a obtenção de resultados. Desde o início da pandemia que, apesar de evidentes sinais de desrespeito pelas regras por parte de alguns, o discurso é triunfalista sobre o sentido de responsabilidade geral, com permissividades que sinalizaram o inverso, como aconteceu com o 1.o de Maio ou as manifestações contra o racismo. De que vale ter um Colombo ou um Vasco da Gama encerrados se depois temos a Alameda e a Almirante Reis com maiores concentrações espontaneamente organizadas do que as da CGTP e sem autocarros dos municípios? Eis como, com a conivência da República, se permite que um interessante momento de expressão cívica de protesto contra o racismo se converta num enorme risco para a saúde pública e num miserável impulso de falta de civismo no atual contexto. Mas estão previstos mais, em que as fotos finais são antecedidas de incumprimentos gritantes nas deslocações e nos preparos organizativos. Alguma esquerda está a querer esticar a corda no exercício de direitos constitucionais que, no atual contexto, conflituam com o interesse geral de saúde pública. Não se trata de salvar postos de trabalho ou o pulsar da economia, é um simples exercício de provocação. Gratuito e irresponsável, com a anuência dos responsáveis da República, enleados nos compromissos partidários, nas contradições das mensagens e das ações e na falta de sentido de Estado. A falta de critério e os sinais contraditórios são lesivos da confiança na República. Podem evitar o pagamento de custos eleitorais, mas há um risco real e sólido de as faturas a pagar serem em degradação da evolução pandémica e em perda de vidas humanas. Não compreender isso é estar longe do que a República precisava. Mina a confiança, desqualifica os protagonistas, por maior que possa ser a complacência na atualidade. No quadro democrático precisamos de valores, clareza e firmeza. Precisamos, mas não os temos. Temos gente de turno.
NOTAS FINAIS
FICA EM CASA. O futebol voltou e, com ele, algumas das expressões mais execráveis da sua existência. Se é para ser assim, o melhor é ficarem confinados ad aeternum.
DESCONFINA. As derivas de irresponsabilidade de Trump e de Bolsonaro apresentam sinais de eficácia eleitoral que refletem o esgotamento dos quadros tradicionais de funcionamento dos sistemas políticos. Deveriam ser um alerta preventivo para todos os democratas, mas demasiados insistem em fingir que não se passa nada. Cá.
Escreve à segunda-feira