Vivemos tempos de enorme escrutínio, em que tudo se noticia, comenta, analisa, glosa; em que as coisas mais pequenas, por vezes insignificantes, muito por força das redes sociais e da amplificação e da velocidade das mensagens, passam a ter importância desmedida. Uma delas é saber se um artista, ao criar, se inspirou nisto ou naquilo, se esteve ou não num lugar, se viu ou não algo que associamos às suas criações. Ora, salvo o devido respeito por diferente opinião, e também sem desvalorizar a importância dos apontamentos biográficos para a exegese da obra, isso nada importa no que respeita ao poder mágico da criação. Tanto se me dá se A ou B esteve aqui ou ali, ou se se inspirou nisto ou naquilo. Aliás, se não esteve ou não se inspirou, isso só engrandece, por um lado, o seu talento, e, por outro lado, o que, existindo na realidade, associamos à obra que o artista nos deu. Quero lá saber se Dumas esteve em If, se Conrad viveu os mistérios do Congo, se Shakespeare foi ou não a Verona e viu uma varanda de suspiros de amor. É inegável que as páginas deles ou de outros nos transportam para lugares e momentos de sonho e de magia. Indiscutível é também que muitos e muitos leitores têm visto aqui e ali esses lugares de sonho, que reconhecem e fazem seus. Se um artista é capaz de criar algo que parece ser um lugar que ele, afinal, nunca viu, mas que para tantos dos seus leitores existe e é reconhecido como sendo aquele lugar, isso é evidência de um ainda maior talento, o talento de imaginar a beleza que existe mas que nunca vimos antes; e, sobretudo, o talento de criar nos leitores um sonho duplamente feliz, feliz porque é um sonho belo, e mágico, e feliz porque para muitos encontra corpo na contemplação do lugar onde os sentidos se encontram com a magia. O sonho tornado realidade. Que coisa maior pode querer um artista senão que para cada um de nós o seu sonho se “torne uma realidade”? É isso que faz a arte perdurar.
Interessa saber se Dickens nos transporta para lugares de Londres que ele pode nunca ter frequentado? Isso diminui o talento de Dickens ou aumenta-o? Creio que aumenta. E tira algo à magia de nos vermos lá, de sentirmos a cidade, acompanhando, por exemplo, as aventuras e desventuras de Oliver Twist? Nada, não tira nada. Essa magia e esse prazer – como também no caso dos leitores que veem em Carroll, a partir de um buraco de coelho, um mundo de total fantasia, ou em Baum um caminho para lá do arco-íris que ele lhes deu a amar – em nada diminuem por saberem que o artista não esteve lá, não viu, não se inspirou. Essa magia e esse prazer são nossos, só nossos, são decisão ou sentimento e património nossos. Devemos isso ao artista, mas também a nós mesmos, e nada nem ninguém pode tirar-nos isso. Nunca ninguém me tirará Macondo, mesmo que saiba que ela não existe ou que pode ser uma metamorfose de um lugar de García Márquez. Tanto me faz, Macondo é Macondo, é a minha, e é só minha. Se um artista nos faz reconhecer em cada uma das suas composições os nossos sentimentos, os nossos sonhos, tristezas e alegrias, e os nossos lugares reais ou imaginários, isso não significa – e isso nada importa – que ele nos conheça ou que tenha estado connosco, ou aqui e ali; significa, sim, que ele criou arte, que ele perdura no tempo. Isso é magia, é talento, é beleza. De cada vez que com ele nos encontramos, e que ali nos reconhecemos, há uma luz que se acende. Seja breve ou longa, intensa ou ténue, seja o que for, é luz. Nada no-la tira.
Escreve quinzenalmente à sexta-feira