Saber separar as águas e defender a Constituição


A crise vai agravar-se e, no respeito firme pelas diferenças de todos e até das contradições inegáveis que algumas delas comportam, é fundamental saber salvaguardar, ainda assim, a unidade dos democratas em torno do edifício constitucional.


Afinal, sempre havia alternativa e, por isso, os discursos mais liberais e anti-estatistas perderam, de repente, muita da sua credibilidade.

As circunstâncias que decorrem da COVID 19 são, porventura, irrepetíveis ou, pelo menos, espera-se que o sejam por um bom tempo.

Já as suas consequências sociais, económicas e até políticas não constituem propriamente uma novidade e irão perdurar.

Consequências desta natureza já antes ocorreram, mas as causas que lhes deram origem eram de outra índole: resultavam exclusivamente das opções políticas e económicas, e das ações humanas que as concretizaram.

A crise provocada pela COVID 19 escapou, porém, em larga medida, à vontade e escolhas dos decisores.

Ela confrontou-os, por isso, com perspetivas e respostas que contrariam gritantemente as tradicionais receitas da ortodoxia ideológica dominante.

De uma maneira muito crua, muito evidente, ficou, desta vez, patente a inalienável importância da intervenção do Estado e dos instrumentos de que ele deve permanentemente dispor para intervir, sempre que necessário e em tempo.

Afinal, sempre havia alternativa e, por isso, os discursos mais liberais e anti- estatistas perderam, de repente, muita da sua credibilidade.

A crise motivada pela COVID 19 desarmou ideologicamente esses setores, bem mais eficazmente dos que toda a contínua e esforçada ação política que tem na defesa da dignidade do homem – de todos e cada um dos homens – os seus valores primordiais.

A evidência da desconformidade discursiva da ideologia radical-liberal com a realidade ora vivida contrasta, por outro lado, com a redescoberta da atualidade da arquitetura e do programa político, económico e jurídico da Constituição.

Daí a aversão, mais ou menos explícita, que lhe têm muitos dos novos movimentos políticos e os seus órgãos de opinião pública.

Hoje, é patente a necessidade de serviços estatais eficazmente autossuficientes e, sobretudo, material e juridicamente acessíveis a todos.

E não me refiro, apenas, aos serviços públicos de saúde.

Refiro-me a toda a estrutura política, económica, social e jurídica do Estado que, durante a crise, foi chamada a intervir, ativa e diretamente, para evitar uma catástrofe humanitária.

Ela atuou – mesmo que insuficientemente, por vezes – no plano sanitário, no plano da sobrevivência económica dos mais necessitados, no plano da preservação das suas condições habitacionais e alimentares essenciais e, até, no plano das carências jurídicas, culturais e emocionais dos cidadãos.

Mais, teve ainda de salvar a economia, acudindo mesmo aos apelos dos agentes económicos que, usualmente, se reclamam e estruturam em torno do sector privado.

Foi, no entanto, no plano das políticas sociais que aconteceram alguns dos seus piores insucessos.

Isto, precisamente, na medida em que, devido ao desarmamento que sofreu ao longo de muitos anos de políticas liberais, o Estado viu a sua ação enredada e dependente dos tradicionais interesses económicos, cuja vocação está, naturalmente, mais direcionada para o lucro do que para a ação social.

Relembro o exemplo de alguns dos negócios – legais, ou ilegais – ligados aos lares de idosos, alguns protocolos e posteriores atitudes dos hospitais privados e parte do sistema de transportes públicos privatizado, que muito contribuíram para agravar a crise, ou, pelo menos, para não minorar os seus efeitos.

Todos, mas todos, clamaram, contudo, pela intervenção do Estado.

Mas todo este cenário, e a perceção clara que os cidadãos, desta vez, dele tiveram, alarmaram, inevitavelmente, as centrais ideológicas e de propaganda dos setores economicamente mais liberais, as do conservadorismo mais radical e, bem assim, as das redes mediáticas da extrema-direita.

Por essa razão, há muito que se não assistia a uma batalha ideológica tão feroz e descarada: uma batalha preventiva e estratégica, que tem, sobretudo, em atenção o day after.

Para espanto de muitos, esta batalha visa com igual raiva e mais acintoso desprezo até, os próprios sectores conservadores moderados.

É que, com o avolumar inevitável das dificuldades que se avizinham – muitas delas resultantes, precisamente, das cedências do Estado constitucional aos interesses que impedem o pleno exercício das suas missões – é-lhes fundamental pescar, cindindo-os, nos hesitantes sectores do conservadorismo democrático.

Sem eles, é-lhes impossível dar uma resposta política sustentada e popularmente mobilizadora à evidência política da relevância da intervenção do Estado, nos termos em que Constituição a define e programa.

Razão pela qual os representantes do conservadorismo democrático – alguns até com responsabilidades institucionais – são, constante e aviltantemente, escarnecidos por alguns comentadores do conservadorismo radical e pelas redes sociais da extrema-direita.

A crise vai agravar-se e, no respeito firme pelas diferenças de todos e até das contradições inegáveis que algumas delas comportam, é fundamental saber salvaguardar, ainda assim, a unidade dos democratas em torno do edifício constitucional.

Foi tal unidade que permitiu até hoje – mesmo que com insuficiências e muitas hesitações – uma resposta razoavelmente digna aos problemas sociais gerados pela crise da COVID 19.

Para defender hoje a Constituição, é necessário saber, por isso, onde colocar o marco fronteiriço que há-de separar os que, mesmo com indecisões, lhe têm ainda apego e os outros, que só esperam por poder demoli-la.

A superação, com humanidade e justiça, das muitas dificuldades que a crise inevitavelmente trará a quase todos os portugueses, só poderá acontecer se se souber definir e separar bem estes dois campos. 

       


Saber separar as águas e defender a Constituição


A crise vai agravar-se e, no respeito firme pelas diferenças de todos e até das contradições inegáveis que algumas delas comportam, é fundamental saber salvaguardar, ainda assim, a unidade dos democratas em torno do edifício constitucional.


Afinal, sempre havia alternativa e, por isso, os discursos mais liberais e anti-estatistas perderam, de repente, muita da sua credibilidade.

As circunstâncias que decorrem da COVID 19 são, porventura, irrepetíveis ou, pelo menos, espera-se que o sejam por um bom tempo.

Já as suas consequências sociais, económicas e até políticas não constituem propriamente uma novidade e irão perdurar.

Consequências desta natureza já antes ocorreram, mas as causas que lhes deram origem eram de outra índole: resultavam exclusivamente das opções políticas e económicas, e das ações humanas que as concretizaram.

A crise provocada pela COVID 19 escapou, porém, em larga medida, à vontade e escolhas dos decisores.

Ela confrontou-os, por isso, com perspetivas e respostas que contrariam gritantemente as tradicionais receitas da ortodoxia ideológica dominante.

De uma maneira muito crua, muito evidente, ficou, desta vez, patente a inalienável importância da intervenção do Estado e dos instrumentos de que ele deve permanentemente dispor para intervir, sempre que necessário e em tempo.

Afinal, sempre havia alternativa e, por isso, os discursos mais liberais e anti- estatistas perderam, de repente, muita da sua credibilidade.

A crise motivada pela COVID 19 desarmou ideologicamente esses setores, bem mais eficazmente dos que toda a contínua e esforçada ação política que tem na defesa da dignidade do homem – de todos e cada um dos homens – os seus valores primordiais.

A evidência da desconformidade discursiva da ideologia radical-liberal com a realidade ora vivida contrasta, por outro lado, com a redescoberta da atualidade da arquitetura e do programa político, económico e jurídico da Constituição.

Daí a aversão, mais ou menos explícita, que lhe têm muitos dos novos movimentos políticos e os seus órgãos de opinião pública.

Hoje, é patente a necessidade de serviços estatais eficazmente autossuficientes e, sobretudo, material e juridicamente acessíveis a todos.

E não me refiro, apenas, aos serviços públicos de saúde.

Refiro-me a toda a estrutura política, económica, social e jurídica do Estado que, durante a crise, foi chamada a intervir, ativa e diretamente, para evitar uma catástrofe humanitária.

Ela atuou – mesmo que insuficientemente, por vezes – no plano sanitário, no plano da sobrevivência económica dos mais necessitados, no plano da preservação das suas condições habitacionais e alimentares essenciais e, até, no plano das carências jurídicas, culturais e emocionais dos cidadãos.

Mais, teve ainda de salvar a economia, acudindo mesmo aos apelos dos agentes económicos que, usualmente, se reclamam e estruturam em torno do sector privado.

Foi, no entanto, no plano das políticas sociais que aconteceram alguns dos seus piores insucessos.

Isto, precisamente, na medida em que, devido ao desarmamento que sofreu ao longo de muitos anos de políticas liberais, o Estado viu a sua ação enredada e dependente dos tradicionais interesses económicos, cuja vocação está, naturalmente, mais direcionada para o lucro do que para a ação social.

Relembro o exemplo de alguns dos negócios – legais, ou ilegais – ligados aos lares de idosos, alguns protocolos e posteriores atitudes dos hospitais privados e parte do sistema de transportes públicos privatizado, que muito contribuíram para agravar a crise, ou, pelo menos, para não minorar os seus efeitos.

Todos, mas todos, clamaram, contudo, pela intervenção do Estado.

Mas todo este cenário, e a perceção clara que os cidadãos, desta vez, dele tiveram, alarmaram, inevitavelmente, as centrais ideológicas e de propaganda dos setores economicamente mais liberais, as do conservadorismo mais radical e, bem assim, as das redes mediáticas da extrema-direita.

Por essa razão, há muito que se não assistia a uma batalha ideológica tão feroz e descarada: uma batalha preventiva e estratégica, que tem, sobretudo, em atenção o day after.

Para espanto de muitos, esta batalha visa com igual raiva e mais acintoso desprezo até, os próprios sectores conservadores moderados.

É que, com o avolumar inevitável das dificuldades que se avizinham – muitas delas resultantes, precisamente, das cedências do Estado constitucional aos interesses que impedem o pleno exercício das suas missões – é-lhes fundamental pescar, cindindo-os, nos hesitantes sectores do conservadorismo democrático.

Sem eles, é-lhes impossível dar uma resposta política sustentada e popularmente mobilizadora à evidência política da relevância da intervenção do Estado, nos termos em que Constituição a define e programa.

Razão pela qual os representantes do conservadorismo democrático – alguns até com responsabilidades institucionais – são, constante e aviltantemente, escarnecidos por alguns comentadores do conservadorismo radical e pelas redes sociais da extrema-direita.

A crise vai agravar-se e, no respeito firme pelas diferenças de todos e até das contradições inegáveis que algumas delas comportam, é fundamental saber salvaguardar, ainda assim, a unidade dos democratas em torno do edifício constitucional.

Foi tal unidade que permitiu até hoje – mesmo que com insuficiências e muitas hesitações – uma resposta razoavelmente digna aos problemas sociais gerados pela crise da COVID 19.

Para defender hoje a Constituição, é necessário saber, por isso, onde colocar o marco fronteiriço que há-de separar os que, mesmo com indecisões, lhe têm ainda apego e os outros, que só esperam por poder demoli-la.

A superação, com humanidade e justiça, das muitas dificuldades que a crise inevitavelmente trará a quase todos os portugueses, só poderá acontecer se se souber definir e separar bem estes dois campos.