O assassínio de George Floyd, um homem negro que não ofereceu resistência durante a sua detenção e foi asfixiado durante nove longos minutos por um polícia branco, transformou várias cidades norte-americanas no cenário de autênticas batalhas campais. Com o recolher obrigatório acionado em mais de uma dúzia de cidades, de Filadélfia a Los Angeles, governadores e presidentes de câmara mudaram de tom em poucos dias, enquanto os manifestantes desafiaam as suas ordens e a brutalidade policial irrompe em todo o país.
Da solidariedade com a ira dos manifestantes, os líderes políticos passam a responsabilizá-los pelo caos que tomou as ruas das cidades norte-americanas, em mais de 30 estados. Mas os manifestantes respondem que a propriedade pode ser restabelecida, mas a vida de George Floyd, e de muitos outros, não – enquanto gritavam "não consigo respirar", repetindo as últimas palavras de Floyd.
Em Minneapolis, onde tudo começou devido ao assassínio de Floyd pelas autoridades, a Guarda Nacional foi destacada para pôr ponto final nos protestos – como noutros 15 estados e em Washington, D.C. “Não precisamos de um recolher obrigatório, precisamos de mudança”, disse Mia, uma residente de Minneapolis com 20 anos à Al Jazira. Voltar para casa enviaria “a mensagem errada de que podem calar-nos quando quiserem, e isso não é o caso aqui”, relatou. No mínimo, os manifestantes exigem que todos os quatro agentes envolvidos na detenção sejam acusados pelo homicídio de Floyd: apenas um, Derek Chauvin, foi detido e acusado de homicídio de terceiro grau.
Para quem se manifesta, a morte de Floyd é uma prova cruel de que as reformas dos últimos anos na polícia foram insuficientes. “Estou cansada de estar zangada, e estou cansada de estar cansada, e estou cansada de ver novos hashtags”, disse ao site Intercept Moriah Stephens, professora de educação especial, em St. Louis Park, no subúrbio onde morava Floyd: referia-se à última onda de mortes causadas por polícias e de outros incidentes racistas no país.
Políticos de Nova Iorque do lado da polícia
Os protestos tornaram-se uma constante um pouco por todos os EUA, no meio de uma crise pandémica que já matou mais de 100 mil pessoas no país. Num vídeo que correu a internet e chegou à comunicação social, vemos uma multidão a criar uma barricada para impedir a circulação de dois veículos do departamento de polícia de Nova Iorque, permanecendo à frente das duas carrinhas.
Os carros não recuaram e atropelaram os manifestantes quando, aparentemente, podiam ter recuado por não haver pessoas atrás. No sábado à noite, em conferência de imprensa, o presidente da Câmara de Nova Iorque, o democrata Bill de Blasio, recusou-se a culpar a polícia pelo sucedido e mostrou-se do seu lado. Afirmou ser “inapropriado os manifestantes rodearem um veículo da polícia e ameaçarem os agentes”. O mesmo fez Andrew Cuomo, governador de Nova Iorque, este domingo.
As palavras do presidente da câmara não foram bem recebidas nalguns círculos, quando as imagens mostram a repetida brutalidade das autoridades da cidade para dispersar os manifestantes. “Este é um momento que exige liderança e a responsabilidade de todos nós. Defender e inventar desculpas para a polícia de Nova Iorque avançar para cima de multidões foi simplesmente errado”, escreveu no Twitter Alexandria Ocasio-Cortez, congressista da ala esquerda do Partido Democrata, qualificando ainda as declarações de De Blasio como “inaceitáveis”.
Solidariedade multirracial
Há uma coligação multirracial – negros, latinos, asiáticos e brancos – exasperada e desesperada pelo estado de coisas nos EUA, principalmente devido à brutalidade racista daqueles que supostamente a protegem, que decidiu tomar as ruas do país e arriscar a vida no meio de uma crise pandémica, exigindo a mudança.
Em várias cidades, manifestantes brancos formam linhas para protegerem os ativistas negros. Em Denver, Colorado, pessoas passaram dez minutos no chão em silêncio. Em Beverly Hills, Califórnia, canta-se “comer os ricos”. Em Memphis, no Tenessee, os manifestantes destruíram uma estátua de um supremacista branco.
Ataques à imprensa
Em Minneapolis, repórteres do Los Angeles Times, da CNN (detido), do Guardian e da MSNBC foram atacados pela polícia antimotim. No primeiro caso, a jornalista em causa diz que foi a primeira vez que foi atacada pelas autoridades: e já reportou em zonas de guerra.
Os ataques à imprensa não ficaram por aqui e, segundo uma contagem do Guardian, houve mais de 50 incidentes violentos contra profissionais da comunicação social: desta meia centena, dois destes atos foram cometidos pelas multidões – um deles contra a Fox News. O outro, em Atlanta, um grupo invadiu a sede da CNN. Em Nova Iorque, o repórter do Huffington Post Chris Mathias foi detido pela polícia e, na sexta-feira à noite, a correspondente sueca Nina Svanberg foi atingida na perna com balas de borracha na sexta-feira à noite.
Violência policial gratuita
Um agente a cavalo no Texas, atropelou uma manifestante. “É um cavalo branco”, foi o que o o polícia, de cima do animal, respondeu quando lhe perguntaram o que se passara. Em Atlanta, na Geórgia, dois jovens negros foram atacados pelas autoridades com armas de choque dentro do carro onde se encontravam.
Veem-se muitas pilhagens de lojas, carros em chamas e bombas incendiárias e outros objetos a serem arremessados contra a polícia – há também relatos de infiltração de grupos de extrema-direita, que tentam aproveitar o caos para incitar ainda mais à violência, que já está num nível explosivo.
Mas também se veem as autoridades a agredir gratuitamente manifestantes que se deslocam para fora dos perímetros voluntariamente ou a atirar gás-pimenta diretamente para o rosto de pessoas que se limitam a estar sentadas ou ajoelhadas no chão, pacificamente: em Brooklyn, Nova Iorque, um vídeo mostra um agente a fazer o símbolo do “poder branco” com a mão. Por outro lado, bombas incendiárias reduziram os veículos das autoridades cinzas: outros saltaram para cima dos carros, destruindo-os. Segundo a polícia nova-iorquina, 40 carros seus foram vandalizados.
"A polícia, por todos os EUA, está a falhar na sua obrigação, sob a lei internacional, de respeitar e facilitar o direito ao protesto pacífico, exacerbando uma situação já tensa e a pôr em perigo as vidas dos manifestantes", disse em comunicado Rachel Ward, diretora de investigação da Aministia Internacional para os EUA.
Também se veem imagens da mesma cidade que mostram que nem todos os manifestantes estão a recorrer à violência para mostrarem a sua ira: quando uma pequena multidão se prepara para saquear uma loja, outros manifestantes, aparentemente organizados, impedem-nos de o fazer.
As manifestações também chegaram à capital, Washington, D.C. Enquanto multidões rodeavam a Casa Branca, no sábado, os manifestantes, suados, gritavam – com máscaras nos rostos – contra os agentes dos serviços secretos, insultando-os e atirando-lhes garrafas e outros objetos. Em Los Angeles, palco de décadas de tensões raciais, houve protestos pacíficos e também uma minoria que saqueava lojas. Os incêndios foram recorrentes e uma manifestante disse à ABC ter mesmo avistado um polícia a atear fogo a um carro.
Donald Trump, Presidente dos EUA, culpabiliza a “esquerda radical” e os “anarquistas” pelo caos – planeia listar os "Antifa" como uma “organização terrorista”. Mas este tipo de teorias não corre apenas nos corredores do Partido Republicano. O governador democrata de Minnesota, Tim Waltz, diz que a maioria, 80%, dos detidos são pessoas de fora da região – uma narrativa repetida pelo presidente da Câmara de Nova Iorque. Desde quinta-feira, em todo o país, foram detidas quase 1700 pessoas, segundo a Associated Press.