O vírus chinês


Ao fragilizar a economia chinesa, a pandemia enfraqueceu a liderança de Xi Jinping. Hong Kong será o palco de uma demonstração de força.


Com excepção dos revolucionários profissionais, que fazem deste anúncio modo de vida, as revoluções não são anunciáveis. Não há, para desgosto de muitos, um qualquer jornal oficial que possa, com verdade, titular em caixa alta: “Amanhã há revolução!” Esta constatação é válida para as revoluções tradicionais, com sinais exteriores de existência: as propulsadas pela dinamite, segundo a escola anarquista; as intestinas, por via de golpes militares; as palacianas, decretadas por uma elite contra outra; as populares, capazes de arregimentar multidões em protesto. Revolução é ruído.

Já as revoluções silenciosas são difíceis de detectar. A transição da revolução silenciosa para a manifestação exterior e sonora da queda do poder que já não o é pode demorar muito tempo. E será tão mais difícil de detectar quanto as manifestações de desafio ao poder, a contestação aberta aos titulares do poder ou a competição aberta pelo poder não façam parte das tradições locais.

A verdade foi a primeira vítima da pandemia. Tendo a pandemia começado na China, não espanta que a verdade tenha por lá falecido prematuramente. A narrativa preparada para exportação pelo Partido Comunista Chinês referia uma história de sucesso no combate ao vírus, cantava as virtudes do partido na organização da sociedade chinesa, superiormente dirigida por Xi Jinping. Xi andou desaparecido nos primeiros tempos do surto, anuindo à pré-narrativa que negava a gravidade da situação. A mudança da narrativa implicou a defenestração dos dirigentes locais do PCC, “culpados de terem ocultado a Pequim a gravidade da situação em Wuhan”. Reposta a verdade, Xi reapareceu em público liderando o sucesso no combate ao vírus. A nova narrativa foi um espantoso sucesso no mercado externo, com muitos milhares de opinadores no Ocidente louvando os métodos chineses e mostrando-se disponíveis para deitar para o caixote do lixo da História empecilhos como o princípio da legalidade, a separação de poderes, os direitos fundamentais, quiçá a democracia ou, pelo menos, a necessidade de eleições periódicas e competitivas. A nova narrativa do PCC tropeçou rapidamente na realidade. O número de mortos anunciado pecava, e muito, por defeito. Uma fotografia das urnas encomendadas para depositar as cinzas dos defuntos mostrava urnas a mais para os mortos oficiais. Gente mais sinistra fez contas à produtividade dos crematórios, que trabalharam noite e dia, e chegou a conclusões semelhantes.

As estatísticas relativas aos mortos não são fiáveis e mostram-se sensíveis à vontade política do partido. Infelizmente, as estatísticas relativas aos vivos sofrem da mesma doença. A pandemia causou estragos na economia, o desemprego disparou, em particular entre os jovens recém-licenciados, os salários baixaram, a qualidade dos empregos também.

O China Daily publicou ontem o editorial de balanço da reunião anual da Assembleia Nacional Popular, o equivalente local de uma assembleia legislativa, mas muito eficaz por ser monopartidária. Nele se reafirma a base do contrato social chinês: a obediência ao PCC garante a prosperidade a todos, ainda que, de acordo com a dificuldade dos tempos, de forma “moderada”.

O PCC está atento a outros vírus, a começar pelo da democracia, que continua a infectar Hong Kong. A legislação anti-sedição aprovada esta semana mostra um PCC disposto a submeter o território e a eliminar a autonomia política que por lá existe. Xi irá fazer de Hong Kong uma vacina eficaz para prevenir a infecção pelo desejo de renovação da liderança.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990