O regresso do cobrador do fraque


A protecção dos direitos das pessoas vale muito pouco perante o interesse de legalizar actividades económicas que as deixam vulneráveis. Nada que, infelizmente, não soubéssemos há muito.


Muitos se recordarão de, há alguns anos, aparecerem na comunicação social anúncios referindo que “o cobrador do fraque visitará os seus devedores”. E, efectivamente, apareciam indivíduos vestidos com um fraque que se punham à porta das casas de alegados devedores ou do seu local de trabalho, não os abandonando até que os mesmos se decidissem a pagar pretensas dívidas que muitos nem sequer reconheciam.

A cobrança de dívidas é um acto próprio da profissão de advogados e solicitadores, uma vez que o art.o 1.o, n.o 6, b) da lei 49/2004, de 24 de Agosto, inclui nos actos da sua exclusiva competência “a negociação relativa à cobrança de créditos”. É por isso manifesto que essa cobrança só pode ser efectuada por advogados e solicitadores, sob pena de ser praticado um crime de procuradoria ilícita (art.o 7.o, n.o 1, da lei 49/2004). Por esse motivo, a Ordem dos Advogados sempre reagiu contra tentativas de outras entidades se dedicarem a essa actividade, que deve ser sempre exercida por profissionais sujeitos a uma regulação e a um estatuto próprio, como o são os advogados e solicitadores. Efectivamente, é absolutamente inconcebível que empresas de cobranças difíceis, que não estão sujeitas a quaisquer regras deontológicas nem sequer a qualquer sigilo profissional, possam praticar actos de cobrança de créditos, em claro desrespeito pelos direitos das pessoas, designadamente a intimidade da sua vida privada.

Apesar disso, no entanto, o PS apresentou no Parlamento, no final de 2017, o projecto de lei 720/xiii, que claramente visava subtrair essa actividade aos advogados e solicitadores, legalizando assim as denominadas empresas de cobranças difíceis. A iniciativa acabou por ser retirada em 4 de Julho de 2019, depois de a Ordem dos Advogados se ter pronunciado claramente contra a mesma.

Essa era, aliás, uma posição comum aos restantes operadores judiciários, que nos então denominados Acordos para o Sistema de Justiça, celebrados em 15 de Janeiro de 2018, sob o patrocínio do Presidente da República, declararam expressamente “a rejeição de qualquer modelo legal de cobranças extrajudiciais fora do quadro dos agentes do sistema de justiça”, enfatizando “a rejeição de quaisquer mecanismos de ‘cobranças difíceis’ e da possibilidade de legalização de formas de interpelação a pagamento, formais ou informais, que não realizadas a coberto de mandato pelos agentes do sistema de justiça”. Nesses acordos salientava-se ainda que “o facto de existirem múltiplos comportamentos desviantes no mercado deve impor aumento de regulação e fiscalização, não promovendo a desproteção dos cidadãos nesta matéria”.

Em Março passado, no entanto, o PS voltou a insistir com uma nova versão do diploma que antes tinha retirado, através do projecto de lei 230/xiv, em que sob pretexto da “proteção de pessoas singulares perante práticas abusivas decorrentes de diligências de cobrança extrajudicial de créditos vencidos” vem, na prática, proceder à legalização dessa actividade, permitindo o seu exercício por empresas de cobranças difíceis a que o diploma chama platonicamente “representantes”. Esses “representantes” passam a poder “cobrar por via extrajudicial o pagamento de dívidas vencidas pelos respectivos devedores, quando estes sejam pessoas singulares” (art.o 2.o), e, mesmo que o devedor esteja representado por advogado, podem contactá-lo directamente sem ser por intermédio do seu advogado (art.o 4.o, n.os 1 e 4). Para além disso, os “representantes” podem andar a comunicar com terceiros para saber do paradeiro do devedor (art.o 4.o, n.o 3), podendo deslocar-se à sua residência entre as 8 e as 20 horas de cada dia (art.o 4.o, n.o 5, d)) e até ao seu local de trabalho, havendo consentimento prévio (art.o 4.o, n.o 5, c)), que pode ser naturalmente exigido aquando da constituição da dívida.

Da apresentação deste projecto de diploma pelo PS resultam duas conclusões óbvias. A primeira é a de que os pactos para a justiça, independentemente de quem os patrocine, não passam de um logro para os advogados. A segunda é a de que a protecção dos direitos das pessoas vale muito pouco perante o interesse de legalizar actividades económicas que as deixam vulneráveis. Nada que, infelizmente, não soubéssemos há muito.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1999