Normal People. Aquele amor que incomodou os anjos e fez de nós adultos

Normal People. Aquele amor que incomodou os anjos e fez de nós adultos


Considerada a primeira grande escritora da geração millennial, Sally Rooney ajudou a transformar o seu segundo romance numa série que resgatou o amor ao regime da infantilidade geral.


Nas melhores páginas dos romances, nessas em que algum autor se deu ao trabalho de compor com letras e espaços uma cena mais ou menos explícita de sexo, um dos efeitos pretendidos terá de ser o de incomodar os anjos. É uma expressão de Jean Cocteau, um autor que tem fornecido tantas senhas aos amantes de natureza mais sensível, a ponto de certas memórias, tocadas pela candura das descobertas juvenis, não dispensarem a sua batuta, como um maestro que pousasse um véu musical sobre um desses acontecimentos que, de tão íntimos, podem parecer brutais ou pornográficos se ofendidos pela luz errada. Ferlinghetti escreveu uma brevíssima ode a esses encontros que estalam de energia sexual, e falou numa jovem com “a sua delicada anatomia”, com “um rosto facilmente ofendido/ tanto pelo riso como pela luz”. Saem-lhe da boca essas revelações mansas, sedutoras de quem tem a capacidade de deixar cair uma meia e fazer estremecer o quarto, a própria noite. E, entre sorrir, desviar o olhar, acender-nos um cigarro, ela lembra a esse rapaz estarrecido que também fomos, como à noite pensamos de forma diferente. E é então que cita Cocteau: “Sinto que há em mim um anjo que constantemente escandalizo.”

Estamos sempre à espera de um autor que tenha essa leveza de cálculo, essa experiência capaz de nos fazer recostar languidamente, apreciando uma descrição que, sendo embora breve, parece capaz de deter o mundo. E se se tornam tão impactantes é pela capacidade de mostrar ao invés de dizer. Impregnam o texto de um pressentimento que parece melhorar a qualidade do silêncio que se lhe segue. E aqui, sem ser possível revelar inteiramente a receita, Cocteau ajuda, explicando como se tornou tão hábil em dar contorno a esses encantos informes: “Aproveitei-me, confesso, de certos acidentes/ Do mistério e de erros de cálculos celestes./ Aí está toda a minha poesia: eu decalco/ O invisível (o que para vós é invisível).”

E isto é uma forma de ajustar a luz antes de falarmos sobre a adaptação televisiva do segundo romance da escritora irlandesa Sally Rooney, “Pessoas Normais”. Originalmente publicado em 2018, o livro apareceu por cá no verão passado, com selo da Relógio d’Água, sucedendo ao romance “Conversas Entre Amigos” (Editorial Presença, junho de 2018), mas se este tinha já causado sensação, sendo considerado uma das melhores estreias literárias em muito tempo, com “Pessoas Normais”, e com apenas 27 anos na altura (hoje tem 29), Rooney tornou-se um fenómeno de vendas sem ficar, contudo, enredada no embaraçoso rótulo da ficção para Jovens Adultos, tendo merecido uma entusiástica recepção da parte da crítica, que pôs a hipótese de ser ela “a primeira grande escritora da geração millennial”. E o seu editor na Faber & Faber soube engendrar um sonante slogan ao chamar-lhe “o Salinger da geração Snapchat”.

É claro que tudo isto, para esse leitor que faz os possíveis por evitar as tendências da estação, apenas há-de fazê-lo torcer o nariz a mais este ‘fenómeno’. Mas uma vez por outra, um excesso de prudência, na típica atitude de quem prefere reservar-se aos clássicos, o que produz é uma forma de desfasamento, um desejo de se proteger do perigo de intoxicação acaba por nos cuspir para fora do tempo em que vivemos. Pois se há obras do passado que se mantêm furiosamente actuais, há também particularidades que lhe escapam, e, sob o risco de se resvalar para a margem, incapaz de reconhecer o seu tempo, um certo grau de risco torna-se essencial, especialmente num tempo em que a aceleração frustra qualquer noção de ritmo no que nos é contemporâneo. Ora, “Pessoas Normais” é o exemplo de um livro e de uma série que, com as diferenças que separam um e outro, desenvolvem um bom argumento para que se abra esse cinto de castidade. 

Ainda antes de o romance ter chegado às livrarias, a BBC comprou os direitos para a adaptação televisiva. Há muito que os executivos da estação pública britânica queriam produzir uma série dramática tendo como fundo a realidade dos millennials, e que servisse como um “antídoto para as grandes produções viradas para o sobrenatural ou a ficção científica, e que têm cativado as audiências mais jovens”, disse Piers Wenger, o director de programação e conteúdos dramáticos da BBC. Do outro lado do atlântico, o canal Hulu serviu como parceiro para a distribuição no mercado norte-americano. Com os créditos de realização divididos entre Lenny Abrahamson e Hettie Macdonald (coube-lhe a ele os primeiros seis episódios e ela os seis seguintes), a adaptação ficou a cargo de Alice Birch e Mark O’Rowe, mas se é evidente a fidelidade ao romance, isso talvez se explique pela participação de Rooney, que assinou também os guiões dos seis primeiros episódios.

Cada episódio dura meia hora, o que respeita a linearidade da narrativa, que se concentra nas duas personagens principais, e não alimenta quaisquer desvios ou tramas secundárias. De resto, aparte os dois protagonistas, Marianne (Daisy Edgar-Jones) e Connell (Paul Mescal), nenhuma outra personagem consegue adquirir grande espessura dramática. E pode argumentar-se, como fez a crítica televisiva Helen Holmes, no Observer, que no romance de Rooney, as personagens são “quase incidentais”, porque são as palavras e as acções que as ligam o que adquire verdadeira substância. Há da parte de Rooney um interesse por “certos acidentes”, o desejo, à semelhança de Cocteau, de “descobrir o acaso em flagrante delito”. Isto não quer dizer que não haja uma estrutura dramática, e uma até bastante previsível, simplesmente o que importa está bem para lá do que vai acontecendo.

A série, que ficou disponível a 29 de abril, segue a relação amorosa que nasce entre dois adolescentes assoberbados pelo confronto entre a interioridade e o mundo exterior, e isto decorre numa pequena povoação fictícia chamada Carricklea, na parte ocidental da Irlanda. Paul Mescal estreia-se aos 24 anos numa das mais aguardadas produções televisivas britânicas no papel de Connell Waldron, um tipo reservado, inteligente, filho de uma mãe solteira, empregada doméstica que faz umas horas na mansão da mãe de Marianne Sheridan. Ele é bastante popular, apesar da timidez, dos problemas de ansiedade, é bom aluno e é domina nos desportos. Aos 21 anos, Daisy Edgar-Jones chega a esta série já com créditos firmados noutras produções televisivas, mas aqui, é difícil não se ficar embevecido com uma figura e uma presença que evocam uma jovem Audrey Hepburn, ou pela forma como a câmera a cerca quase pasmando. Também ela é muitíssimo sensível, inteligente, mas, ao contrário dele, parece tirar algum gozo ao retaliar de forma sarcástica à mofa dos colegas de liceu. Logo no primeiro episódio ela declara-se a Connell, e a atracção entre os dois não se perde em balbucios, mas desdobra-se numa forma de cumplicidade que não perde tempo com pruridos, antes desenvolve essa linguagem sujeita “à gravidade do coração”. “Quem ama escreve nas paredes”, notou Cocteau, e esta série atinge essa forma de moralidade sensual, das frases proclamadas entre os lençóis, dessa forma de se descobrir na intimidade partilhada. Assim, Marianne às tantas regozija-se com a atracção de Connell por ela, e diz-lhe como uma criança dando-se conta do seu poder para desassegar os anjos: “Tu ficaste tentado. Fui eu que te fiz isso.”

Rooney comparou algumas vezes a escrita de cenas de sexo com a escrita de diálogos, notando que tudo depende de uma tensão em que cada sinal de pontuação, cada batida conta. E a série acompanha os cinco anos seguintes em que de adolescentes os dois irão manter-se sempre ligados, ainda que as circunstâncias se alterem, com margem para desencontros e rupturas desoladoras. E num período cultural em que tropeçamos em comédias românticas, e na reprodução das mesmas fórmulas degradantes, com a intimidade estupidificada, arrasada por emoções inexperientes, apetites sexuais que não passam de caprichos, anseios quase cínicos que correspondem, no fundo, a suspiros de uma solidão atroz, a perder o pé nas suas ilusões, esta série é um ponto de fuga. As cenas sexuais estão lá como um diapasão. Abrahamson e a cinematografa Suzie Lavelle inspiraram-se no trabalho de Nan Goldin, especificamente nos seus nus apanhados em flagrante. E esta influência pulsa no ecrã nos momentos em que a cenas de nudez frontal, esses momentos de um silêncio que repousa e que nos explicam como a maior beleza resulta sempre de um acidente. A elegância que quase não se nota. Aquela vulnerabilidade de dois corpos encadeados, que apuram essas fraquezas que dão integridade a uma obra, que a suspendem e lhe dão “mais ar de pedra caída de um astro” (Cocteau).

Esta série conta a sua história a partir da perspectiva do tempo e da maturidade. É sobre adolescentes, sobre jovens, sobre o papel essencial do amor na nossa identidade, o que nos permite reclamar-nos adultos, e tudo parece atrevessado por uma espécie de benevolência, como quem recorda, como quem se vê assaltado pela memória, por esses flashes e projecções que montam um cinema na nossa interioridade. E é por isso que a série é tão tocante, pela sensação de se estar a passear pelas memórias de alguém, por essas experienciais cruciais, esses quadros para sempre tortos nas paredes e que mantêm de pé o que quer que seja a nossa casa. Essas imagens que passam pela retina e quase nos sufocam de doçura. Como o caminho pedregoso que se fez até à vila, andando de bicleta, para ir buscar víveres. Uma conversa com o reflexo dos dois de cabeça para baixo na piscina, ou um momento de clareza ao comer gelados numa praça italiana quase deserta e aparentemente arredada do mundo: “Mas é o dinheiro, não é? A substância que torna o mundo real”, diz-lhe ele. E ela: “É. É tão corrupto. E sexy.”