Os “frugais” e outros que tais


Vamos aderir à frugalidade seletiva e ser mais exigentes no consumo. O novo normal é consumir produto nacional.


A pandemia sublinhou a importância de cada um como parte da comunidade, com influência nas dinâmicas das diversas esferas em que nos integramos ou com que interagimos. Foi a soma de muitos contributos individuais, genuínos ou forçados pelas imposições do estado de emergência e das calamidades adjacentes, que contribuiu para o achatamento da curva de crescimento do contágio que permitiu disponibilizar os recursos e reajustar a resposta do Serviço Nacional de Saúde. Dentro da margem de manobra individual neste esforço comunitário, fomos todos diferentes, nos gostos, nas atividades e nos impulsos permitidos. Houve um compromisso individual para a obtenção de um ganho geral, e conseguimos. É claro que houve uns gananciosos de rua que não cumpriram, os tradicionais chicos-espertos que tentaram contornar e os inquebrantáveis rebeldes em relação às regras, que impulsionaram ridículas afirmações de diferença individual. É claro que muitos, por força das funções profissionais, na saúde como na disponibilização de bens e serviços essenciais, tiveram de continuar a correr riscos necessários.

A pandemia pode não mudar muita coisa, até porque muitos dos problemas são globais e precisam de soluções nesse patamar, mas traz-nos ensinamentos individuais. Desde logo, a relevância da ação individual para a obtenção de impactos comunitários, por ação ou por omissão. Mas também a importância dos impulsos individuais no curso de muitas das dinâmicas locais, regionais e, porque não, supranacionais.

Na Europa que temos, na pré-pandémica e na pandémica, que deveria ser um projeto de liberdade, de paz, de segurança, de desenvolvimento e de coesão, persiste a existência de blocos que, em manifesto abuso de posição dominante e de bloqueio, porfiam em sublinhar a alegada menoridade dos países do sul da Europa na gestão dos recursos, enquanto acolhem nos seus territórios espaços de criatividade contabilística para a fuga aos impostos e indústrias de produção de bens e serviços assentes nos hábitos de consumo dos povos do Sul. Nós seremos os garganeiros – temos bem presentes as declarações do holandês “conta-tostões”, Jeroen Dijsselbloem, que como presidente do Eurogrupo acusou os europeus do Sul de gastarem dinheiro em “copos e mulheres”; eles seriam os frugais. Os frugais (Países Baixos, Áustria, Suécia e Dinamarca), escudados na regra comunitária da unanimidade e numa auréola de autoridade moral para impor sacrifícios, enquanto sacam o lucro das vendas aos do Sul, insistem em não ter em conta nem as individualidades nem as comunidades, na sua diversidade e nos contextos que atravessam. Em sentido geral, podemos não ter feito tudo bem, podem alguns de nós ter gerido ao lado do que devia ser e podemos estar comprometidos com estilos de vida que são pouco organizados, pouco sensíveis ao dia de amanhã e desfocados do essencial, mas temos identidade, competências e vantagens comparativas. Pois bem, a pandemia reconfigurou-nos ao essencial e percebemos a mensagem, pelo menos alguns. Vamos aderir à frugalidade seletiva. Como a soma de cada um perfaz uma parte do todo, vou ser mais exigente no consumo.

O novo normal é consumir produto nacional, exigir que a distribuição efetivamente tenha mais oferta nacional, não apenas para os anúncios de ocasião e com relações justas com os produtores, ainda que longe da intensão albanesa do Bloco de Esquerda de querer suprimir o lucro dos intermediários.

O novo normal será evitar produtos dos Países Baixos, Áustria, Suécia e Dinamarca. Afinal, se desprezam tanto o Sul, não precisam do nosso consumo. Continuamos a encontrar-nos, podemos falar e até beber um copo de água da torneira, se houver alguma convergência sobre o magnífico projeto europeu que têm moldado ainda melhor, mas ficamos por aí. Um relacionamento frugal com os frugais. Sem fruta, sem comida vegan, com moderação e sobriedade. Não será boicote ou retaliação, mas apenas um reajustamento do consumo à frugalidade que se exige, numa Europa em que alguns não sabem estar no tempo corrente e na emergência. Ao abuso de posição dominante dos frugais, oporei um empenhado abuso de posição relevante como consumidor.

Para além do sentido de responsabilidade individual perante a comunidade, reforço a importância do respeito pelo outro, na sua identidade, diversidade e existência. Algo tão basilar em que assentam as normas de proteção perante o risco de contágio, no distanciamento social, no uso da máscara, na lavagem das mãos e na etiqueta respiratória. Por nós e pelos outros. Onde existiam soluções mais ousadas do que é normal, os frugais insistem em sublinhar os problemas e querem gerar imobilismo. É um caminho. Trágico, mas um caminho de pedras. Com a agravante de que, neste caso e ao invés da lenda do frade de Almeirim na improvisação da sopa da pedra, daquela gente só podemos mesmo esperar uma sopa aguada. Por mim, até mudarem de atitude, a solução é produto nacional e tudo menos origens frugais. É que, para frugais, já bastam alguns dos nossos protagonistas políticos. Frugais no senso, nos valores, na transparência e no respeito pela inteligência dos portugueses.

NOTAS FINAIS

FRUGAL A PENSAR. Por mais contraditória que uma liderança possa ser com os valores de sempre e com a democracia, uma coisa nunca limitará a liberdade de expressão. Em democracia devia haver maior sentido de responsabilidade política, mas nunca há temas encerrados por vontade unilateral, como alguns gostam de proclamar. Inscreveram as presidenciais na ordem do dia, com uma inclinação autocrática, respondida em Ovar, num almoço entre Marcelo e Rio com um estrondoso “desencosta-te de mim!”. Marcelo Rebelo de Sousa sobre Rui Rio: “Não só colaboramos harmoniosamente como até pertencemos à mesma área”.

FRUGAL A FALAR. O nosso contexto sociorreligioso transformou o erro numa tragédia, quando pode fazer parte do processo criativo, evolutivo ou produtivo. Mas há uma certa tendência para anuir com as chico-espertices. Consta que nas linhas de financiamento para as empresas com garantias do Estado, algumas instituições bancárias terão dado alguma prioridade aos seus créditos de risco a empresas. Sacudiram assim o risco para o Estado e quem precisava para aguentar o embate da pandemia ficou na lista de espera. É o padrão a funcionar: nós pagamos.

FRUGAL A FAZER. É difícil fazer em Portugal. Há muitas quintinhas e especialistas no pós-realização. Antes de se fazer é que é o diabo. Depois de a Entidade Reguladora da Saúde querer taxar os hospitais de campanha apoiados pelas autarquias, agora é o Infarmed a questionar os materiais de testagem da covid-19, fabricados em Portugal, utilizados nos lares e nas creches. A posteriori, num quadro de emergência, com pressão dos poderes políticos, dos média e da população, é sempre muito fácil. Em Portugal, na dúvida, demasiadas vezes, o melhor mesmo é não fazer. É triste.

Escreve à segunda-feira