Para combater a crise económica provocada pela pandemia, os países da periferia devem agir como se o euro não existisse. “Não têm alternativa”, defende Costas Lapavitsas, crítico do euro e do modelo de funcionamento da União Europeia, que chegou a ser eleito deputado pelo Syriza. Atualmente é professor de Economia na School of African and Oriental Studies da Universidade de Londres.
Com a crise pandémica, muitos académicos, jornalistas e outros têm argumentado que o Estado está de volta. Não esteve sempre cá?
Claro. O Estado nunca desapareceu. Foi sempre uma ficção pensar que vivíamos num período de declínio do Estado-nação, que o Estado-nação era irrelevante, insignificante, e o que importava era, presumivelmente, o mercado global, as empresas privadas, o capital internacional, as multinacionais. Tudo isso foi fortemente ideológico. Nunca teve muita validade: o Estado esteve sempre presente. O seu poder foi sempre o dinheiro primeiro – na nação que o cria e controla –, através da banca, da banca central em particular. O que vemos agora, todavia, com a pandemia, é um salto qualitativo. O poder do Estado-nação moderno é espantoso – acho que nunca foi tão poderoso em qualquer outra altura da História –: essencialmente, o Estado-nação encerrou a economia mundial nos últimos dois meses. Nunca houve um evento deste género na história do capitalismo ou anterior a este. O Estado-nação é tão fenomenalmente poderoso que não só parou a economia global como agora assume o poder de a retomar. Se o Estado-nação não intervir ativamente para reiniciar a economia, então vamos entrar num longo período de contração económica dramática. Para responder à sua pergunta, sim, o Estado sempre cá esteve. Mas a pandemia clarificou uma mudança qualitativa na sua importância. E vai ser assim nos próximos anos, penso.
Recentemente vimos Christine Lagarde ignorar a deliberação do Tribunal Constitucional alemão. O economista e sociólogo alemão Wolfgang Streeck diz que o BCE é o banco central mais independente do mundo. Concorda?
Acho que não. Normalmente, quando as pessoas falam da independência do BCE, o que querem dizer é que o BCE irá emergir como uma força e será um ator que irá agir independentemente dos Estados-nação. O que se está a passar é o contrário: os Estados-nação é que estão a gerir tudo desde que emergiu a crise pandémica. É notável a reafirmação dos Estados-nação. Sem qualquer sombra de dúvida, são os Estados-nação na Europa que estão a tentar lidar com a crise da melhor forma que podem. O BCE é simplesmente uma espécie de protetor orçamental, um fornecedor comum de liquidez para permitir aos Estados fazerem o que puderem e fingirem que a união monetária ainda é um sistema baseado em regras acordadas entre eles. Portanto, não é de todo o que as pessoas querem dizer quando falam sobre a independência do BCE. Na realidade, o que se está a passar é a asserção dos Estados, e o BCE, presentemente, é ainda menos importante do que antes – ou seja, na capacidade de impor a sua vontade sobre os Estados.
Acha que os eurobonds fazem parte da solução para a crise?
Bem, a primeira a coisa a reconhecer é que a união monetária é, na realidade, um problema para a Europa. Está a impedir a Europa de ter uma estratégia comum e está a criar um problema extra para os Estados-nação europeus: seja o que for que tenham de fazer para lidar com a pandemia, também têm de tomar ações para salvar o euro. Por outras palavras, em vez de estar a ajudá-los, o euro é uma preocupação extra. É como se a Europa tivesse criado para si uma bomba com reação em cadeia. Para responder à crise, primeiro de tudo, tem de haver uma intervenção no lado da procura. Temos o colapso da procura devido às medidas tomadas para lidar com a pandemia, o primeiro efeito. Mas, claro, o efeito secundário é o desemprego. Crise no desemprego destrói rendimentos – o que já estava a acontecer –, e isso destrói a procura. Deve haver, assim, uma intervenção pública no lado da procura. E eu não vejo outra forma de lidar com isto eficazmente sem se introduzir alguma forma de rendimento básico. Acho que o tempo chegou. Não concordo necessariamente com sugestões anteriores, mas não acho que possa ser evitado: é necessária uma qualquer versão de rendimento básico para apoiar a procura.
Quando se refere a um rendimento básico, defende-o a nível europeu? Como Pablo Iglesias, vice-primeiro-ministro espanhol, e outros ministros estão a defender?
Não acredito que irá haver um rendimento básico a nível europeu. Não concordo com o que está a propor Pablo Iglesias – acredito que isso só confunde a questão. Acho que, dentro dos seus constrangimentos, cada Estado deve procurar um rendimento básico. Intervenção no lado da procura é o primeiro passo.
E isso será suficiente?
Não é suficiente porque temos uma assombrosa destruição da oferta – em parte causada pelo choque pandémico, pelo encerramento das cadeias de produção, mas também devido à fraqueza anterior no lado da procura. A economia global já estava bastante fraca quando a pandemia a atingiu. Por isso, a intervenção deve ser alargada e corajosa. Não podemos ficar por meias-medidas. Deve ser uma intervenção que crie propriedade pública, gestão pública sobre recursos-chave, programas comuns de produção e de troca e esquemas de emprego público. Isso pode ser concretizado: as companhias aéreas na Europa precisam de ajuda. Antes de o dinheiro público ir para estas – se for -, devem ser impostas regulamentações sobre como serão geridas e sobre o que irá acontecer com estas empresas. E o mesmo tem de ser feito com qualquer outra atividade produtiva que requeira ajuda estatal. A ajuda estatal deve vir com regras sobre como devem operar estas atividades, na minha opinião. E isso deve ser acompanhado com programas de emprego público. Não há forma de confrontar o fluxo de desemprego que estamos a presenciar intervindo simplesmente no lado da procura. Depois, temos as finanças. Obviamente, dar estes passos implica um tremendo aumento no endividamento público. É claro que a dívida pública vai crescer, e isso vai vigorar na periferia ainda mais do que nos países do centro. É aí que a diferença entre o centro e a periferia irá emergir. A diferença irá ser nos empréstimos, tanto na sua dimensão como em quem pode pedir crédito e como. Claramente, Portugal, Grécia ou Itália estão consideravelmente mais constrangidos do que a Alemanha ou a França em termos de condições de crédito. Conseguimos ver isso na sua intervenção na procura. Os totais da intervenção por parte do Estado alemão, neste momento, são proporcionalmente muito, muito superiores aos totais da intervenção dos Estados português, grego ou italiano. Essa é a fraqueza do euro e esse é o seu problema concreto para os países periféricos.
O que devem fazer os países periféricos?
Nesse contexto, na minha opinião, terão de agir como se o euro não existisse – não têm outra opção. Para incentivarem a procura, terão de pedir crédito. Presumivelmente, o BCE irá comprar muita parte desta dívida, como é de esperar que este programa de combate à crise provocada pela pandemia faça. Se não o fizer, os países periféricos devem usar os seus próprios sistemas bancários nacionais. Num certo sentido, será guerra financeira. Devem usar os seus próprios sistemas bancários e mobilizar a sua capacidade de crédito a fim de apoiar as intervenções para lidar com o choque económico. Resumindo, uma intervenção financeira também é necessária. Isto está efetivamente ligado à forma como se pagará a crise.
E a inflação? Não foi um problema depois dos programas de estímulos norte-americanos e do BCE para combater o colapso financeiro.
Essa foi uma crise de uma natureza diferente. Foi uma crise económica mais direta causada pela enorme expansão do sistema financeiro, que colapsou, criando um choque na procura e reajustes na oferta. Nesta, há um golpe no lado da procura que pode ficar por cá durante algum tempo. Para lhe dar um exemplo: sugeri uma versão de rendimento básico para impulsionar os rendimentos privados e apoiar a procura. Mas a procura, para as pessoas comuns, limita-se em grande medida a irem viajar nas férias, comerem em restaurantes, na utilização dos transportes. Só com estes rendimentos privados não se resolve a questão. O turismo vai estar muito fraco.
É apenas uma solução imediata.
Sim, os Estados terão de agir depois de uma forma mais racional. No imediato, o que impera é impulsionar a procura. Certamente, até ao final de 2020. Se isso acontecer, reconheço que a inflação pode ser um problema em certos setores da economia. As pessoas vão ter dinheiro nos bolsos, mas não irão de férias, não vão comer em restaurantes, não vão usar os transportes como usavam antes. Resumindo: é necessária uma intervenção no lado da oferta, no lado da procura e nas finanças. É isso que se requer neste momento, também nos países periféricos. Se a pertença à união monetária se tornar um obstáculo demasiado grande para os Estados periféricos, estes devem reconsiderar se vale a pena estar nela.
Como se faz isso? Com que programas e alianças?
Não acho que a pertença à união monetária seja o maior problema neste momento. Se o euro se tornar um constrangimento de ordem maior, o que pode acontecer é o euro partir-se em duas moedas diferentes. Isso seria o mais lógico, em vez de voltarmos a moedas individuais nacionais, ou seja, duas moedas diferentes em competição uma com a outra.
Como se desenvolveria esse processo?
Não sei. Ninguém sabe. Isso irá emergir com o que ocorrer nos próximos meses, conforme a crise se revelar na França e na Alemanha. É impossível dizer para já como isso aconteceria. Mas a França, em particular, terá o maior problema de todos. Se o euro, de facto, se partir em duas ou três moedas diferentes – e isso até pode começar em Itália -, o maior problema não ocorrerá com a Itália mas sim com a França. A França terá de decidir que tipo de euro vai querer: um euro com a Alemanha ou um euro mais fraco. E isso é uma escolha muito difícil para a elite francesa.
Defende que o euro foi o maior bónus que a economia alemã poderia ter tido. Acha que a Alemanha e outros países do centro aceitariam uma solução como essa?
Depende de quão mal as coisas ficarem na periferia. O que a Alemanha fez na crise da zona euro foi basicamente manter a coisa toda unida porque retira benefícios deste arranjo monetário, especialmente o seu setor industrial. Ou seja, o poder alemão aguentou a Europa impondo condições à periferia, dando-lhes a opção de pegar ou largar: “Se quiserem ficar, têm de fazer o que nós vos dizemos. Se não quiserem fazer o que nós mandamos, saiam”. A periferia amedrontou-se. Não estamos aí neste momento, depois de dez anos e com uma crise de ordem diferente. O desemprego nos Estados Unidos já é de 15% e o desemprego na periferia vai ser enorme – também é muito substancial na Alemanha. Esta crise é de uma dimensão muito mais severa. Por isso, as escolhas da elite alemã vão ser muito diferentes das de há dez anos. Tudo dependerá da agitação política e da turbulência económica pela Europa fora.
Com a Comissão Europeia a dizer aos Estados-nação para ignorarem as regras, os tratados, acha que foi um reconhecimento de que estes mecanismos não são apropriados para combater uma crise?
O Pacto de Estabilidade e Crescimento foi suspenso. Efetivamente, o euro é uma moeda comum sem regras. A suspensão das regras é um reflexo do gigantesco falhanço histórico. Em 2010, o euro em si mesmo criou um enorme problema para a Europa e, em 2020, com o choque pandémico, o euro tornou-se um enorme problema novamente. Tiveram de levantar os regulamentos porque, com eles, seria impossível lidar com a pandemia. Isto é uma prova, não tanto de que as regras são estúpidas, mas sim de que o euro é estúpido. Qual é a utilidade do euro? Porque criaram os países europeus esta moeda comum? Sempre que aparece um problema económico, a moeda piora o problema. Em vez de ajudar, cria ainda mais problemas. Isto é a definição de um falhanço histórico.
Já escreveu que o bloco europeu foi formado não só para competir com os Estados Unidos e a China, mas também para arquitetar um processo monetário e de troca, e para beneficiar o setor industrial alemão. Como evoluiu este processo?
Temos de separar a União Europeia da união económica e monetária. A União Europeia da década de 1960 e de 1970 era uma coisa muito diferente da União Europeia de 2010. Tinha um sistema intervencionista porque o Estado era intervencionista. Entre 2000 e 2010 tornou-se algo muito diferente – neoliberal, pois era o que dominava as políticas económicas. A União Europeia em si mesma sofreu alterações significativas. Já a união monetária foi, de alguma forma, o maior erro cometido pela União Europeia. Se me pergunta o que é a União Europeia, posso-lhe dizer diretamente em poucas palavras: não tem nada a ver com uma Europa unida, nada a ver com convergência, com um caráter europeu comum, com a criação de democracia e prosperidade. Isto são termos ideológicos que foram usados nas últimas duas, três décadas. A União Europeia é uma aliança de Estados-nação baseada nos tratados. É uma criação dos Estados-nação.
Dentro do mercado único e com os Estados-nação a competirem entre si.
Exato. O mercado único é um terreno onde os Estados-nação e as empresas e os bancos que se localizam nos Estados-nação se posicionam, dependendo da força de cada Estado. Fundamentalmente, a União Europeia é isso. Também é verdade – e é isso que a torna diferente de outras alianças – que cria as suas próprias organizações transnacionais, como a Comissão. É verdade que isto complica a questão e permite que algumas pessoas pensem que seja um Estado transnacional. Não o é nem nunca se tornará um Estado transnacional. Os Estados-nação retêm a soberania. Mas arrastam-na conforme as suas necessidades, das suas empresas, dos seus interesses nacionais particulares. Nesse contexto, não havia necessidade de a União Europeia ter uma moeda comum deste género. O único Estado-nação que claramente beneficiou dela foi a Alemanha, sem dúvida.
Os franceses pensavam que podiam diluir o poder do marco alemão no euro. Porque é que isso não aconteceu?
A História está recheada de consequências não intencionais. De facto, foram os franceses que pressionaram para a criação do euro. A elite francesa pensou que a união monetária iria ser um bom instrumento pelo qual exerceria controlo sobre a Alemanha reunificada. Os Estados mais pequenos, como Portugal, Grécia e outros países, também cederam à união monetária porque aparentava ser uma forma de controlar as taxas de câmbio, o que na história da Europa foi sempre muito problemático para os Estados pequenos.
Porquê?
Historicamente, as divergências nas taxas de inflação – com a Alemanha com taxas baixas – sempre criaram problemas cambiais ou nas divisas para os países periféricos, à Itália em particular. Por isso, acreditaram que a união monetária seria uma forma de estabilizar a situação e de lidar com as crises nas taxas de câmbio. A combinação destes fatores, juntamente com outros desenvolvimentos político-económicos, levou à introdução da UEM. A elite alemã atuou com uma disciplina considerável domesticamente, controlou as taxas de salários nominais, controlou o mercado interno, os preços, e acumulou uma tremenda vantagem competitiva. A Alemanha emergiu assim com um vasto poder exportador. A Alemanha tem um vasto poder industrial no setor dos químicos, na indústria automóvel, nas máquinas-ferramentas, e suga a procura de todo o mundo. Pelo menos costumava fazê-lo até 2018, e fá-lo mantendo a economia interna suprimida de forma permanente. É um sistema bizarro e não se pode manter por muito mais tempo – até porque a dominação económica alemã está centrada nas indústrias automóvel, química e das máquinas-ferramentas, mas as tecnologia de ponta não são estas. É, basicamente, a inteligência artificial e o 5G, e a Alemanha não está nesse campo. O único país na Europa que tem potencial para crescer e para competir – com os Estados Unidos e a China – nesses campos é o Reino Unido.