Laissez faire, laissez passer, monsieur Centeno


Será ético que o ministro das Finanças possa servir para governador do Banco de Portugal apenas para garantir ao seu ainda Governo que continue a dominar completamente o setor económico e financeiro em Portugal?


Arrasta-se já há demasiado tempo a novela que envolve o ministro Mário Centeno e a sua suposta transição do Executivo da República para o Banco de Portugal. Naquela que acaba por ser a espuma dos dias, como na maior parte das vezes acontece quando em causa está um assunto importante, acorremos todos de imediato a discutir pormenores de segunda linha em vez dos que deveriam estar na origem do debate. Nesta matéria, o que verdadeiramente deveria estar em cima da mesa era discutir se é admissível que um qualquer ministro das Finanças possa transitar do Governo para o Banco de Portugal sem que antes seja cumprido e devidamente respeitado um período de nojo. Sou dos que entendem que esta condição deveria ser indispensável à desejável independência das instituições portuguesas, pese embora, ao defendê-la, anteveja dois argumentos já muito repetidos. Por um lado, o argumento puramente político-partidário: muitos dirão que quem tem esta opinião tem-na porque não é da cor política do Governo. Por outro, a repetição já quase exaustiva de que, por exemplo, no Governo de Cavaco Silva, o mesmo aconteceu com o ministro Miguel Beleza. Nesta dinâmica, tanto um argumento como outro, além de me parecerem absolutamente redutores na sua dimensão política, cheira sempre levemente a uma certa opacidade do sistema que procura a todo o custo dominar vários setores de interesse nacional, ainda que, para que tal aconteça, se deva prestar menos atenção a barreiras éticas que, quanto a mim, deveriam ser intransponíveis. Mário Centeno tem sido, ao longo dos últimos anos, apelidado de Ronaldo das finanças e jogou sempre numa tática de marcação à zona pelas cativações. Aqui chegado, mesmo que, para o campeonato interno, os resultados fossem sempre alcançados para lá do tempo regulamentar previamente definido mas, ainda assim, fossem dando para sofrivelmente sobreviver jornada após jornada, foi nas provas europeias que ganhou destaque, classificando-se para a liga dos campeões da matéria e vencendo a fase de grupos, tornando-se presidente do Eurogrupo. No entanto, na iminência de nada mais haver para cativar e de ter de existir folga orçamental para responder às necessidades trazidas pela covid-19, o tiki-taka de Centeno esgotou-se e é hoje um homem manifestamente enfadado com o papel que continuam a obrigá-lo a desempenhar, como de resto ficou provado pelo balde de água fria que entornou sobre António Costa no pagamento recente efetuado ao Novo Banco. Terá Mário Centeno capacidades intelectuais, profissionais e/ou curriculares para ser nomeado governador do Banco de Portugal? Quero deixar bem claro que não questiono que tenha. Mas será ético que o ministro das Finanças que, após aplicar ao país a receita tutelar que aplicou e que agora mais não serve, possa servir para governador apenas para garantir ao seu ainda Governo que continue a dominar completamente o setor económico e financeiro em Portugal? Será ético? É neste foco de observação que me coloco e, perante ele, o meu entendimento é claramente desfavorável, seja com o Ronaldo das finanças ou com um outro qualquer Messi da área que possa vir a surgir. Ou então toca para a frente, continuem, é deixar fazer, é deixar passar…