George Steiner. Uma educação exemplar

George Steiner. Uma educação exemplar


Errata – revisões de uma vida, de George Steiner, perpassa os temas recorrentes no pensamento, na obra, na vida do autor, mas é sobretudo a descrição de uma infância de letras, de memorização, de línguas mortas, de museus, de desafio intelectual permanente aquilo que nos explica a excepcionalidade deste pensador.


Repare-se na autobiografia de George Steiner (Neuilly-sur-Seine, 23 de abril de 1929 – Cambridge, 3 de fevereiro de 2020) , “o último dos renascentistas” (no séc.XXI). Detenhamo-nos na infância. Observemos como, todos os Sábados, o pai o levava pela mão aos museus de Paris, primeiro, e Nova Iorque, mais tarde, de acordo com o local onde foram morando – gerúndio propositado para explicar o nomadismo e diáspora judias, dos quais faziam parte, na primeira parte do século XX (em função dos vários progrom de que os judeus foram vítimas).

Atentemos no pormenor: a senhora, pequenina, escocesa, que vinha ensinar e ler Shakespeare, com o jovem Steiner, em casa deste. Aproximemos a lupa: o menino a ler Homero no original. Educação trilingue: francês, inglês e alemão. E, logo-logo, o grego. Decorado. Um saber de cor é, também, um saber de coração – ensinara-nos o Professor de Oxford.

Errata – revisões de uma vida perpassa os temas recorrentes no pensamento, na obra, na vida de Steiner, mas é sobretudo esta infância – esta infância de letras, de memorização, de línguas mortas, de museus, de desafio intelectual permanente – que me interessa.

E interessa-me, porque parecem-me memórias de um tempo em que havia tempo. Porque parecem-me memórias que muito do espírito de hoje afastaria, entre o desdém e a indiferença. Porque (lhes) falta pragmatismo, porque não caiu na barbárie do especialismo – para citar Gasset -, porque apela ao pensamento abstracto e não se concentra na acção. Porque é teórico  – com o exacto significado que aqueles que amam uma tonta prática desprezam. Porque se dispersa. Porque não tem por função a utilidade.

Interessa-me muito esta auto-biografia, porque ela se coloca do lado do miúdo que aprende, fascinado, Aquiles: ‘aceitei, com inquestionável entusiasmo, as ideias de que o estudo e a fome de conhecimento eram os ideais mais naturais, mais determinantes’.

A obra recorda o pai – um pai dedicado, um judeu compenetrado e rigoroso, oriundo de boas famílias, inteligente e admirado – e, nele, não se vê um conformista, um resignado, um homem para quem já nada há a aprender ou inventar: ‘consciente ou inconscientemente, o ironista céptico concebera para o seu filho um Talmude secular. Eu devia aprender a ler, interiorizar a palavra e o comentário, na esperança, conquanto fortuita, de que um dia pudesse acrescentar a esse comentário, à sobrevivência do texto, mais uma nesga de luz’.

Não apenas a cultura não era um aborrecimento; não apenas o aparente diletantismo desaguou numa das mais brilhantes cabeças do nosso tempo; não apenas o poliglota se sentiu mais à vontade em dominar novos autores, outras ideias e cosmovisões diversas; não apenas se afirmou, a partir de tal educação, um intelectual de primeira linha a nível mundial, como, mais importante, o seu dia-a-dia, foi permanentemente auto-evocado como (sendo) de alegria, de entusiasmo juvenil, em diálogo e revisão, em interpretação e reinterpretação das/com as obras que o marcaram e fizeram, e com as sucessivas gerações que por elas passaram e que sempre o ouviram e respeitaram com atenção, nas suas próprias palavras.

É, ainda, uma auto-biografia que me interessa, porque os momentos de prazer e descoberta que me proporcionou, quando mergulhei nos seus escritos, implicam, também, olhar como essa verdadeira magia – pôr-nos em conversação com ele e os seus livros – se fez e foi construída desde o berço. 

Quer pela defesa que fazemos de uma dada visão para a educação pública, quer por aquilo que, em casa, em cada dia, se pratica (como educação privada), estamos, sem cessar, consciente ou inconscientemente, a projectar um dado ideal de homem – o nosso (ideal). A (auto)biografia de Steiner é, pois, referência de uma educação de vistas largas. E de, adicionalmente, por assim dizer, ter a noção da relatividade das coisas e da humildade que a sabedoria aduz: ‘quando me fez decifrar, quando me obrigou a soletrar e a decorar a afirmação de Aquiles de que os homens (e as mulheres) muito mais talentosos e necessários do que nós têm também de morrer (por vezes, muito jovens, e na miséria ou em situações injustas); quando me fez atentar no axioma de Aquiles de que a nossa morte tem a sua manhã, tarde ou noite aprazada, o meu pai quis poupar-me a certas estultices’.