Liberdade. Ou como sobreviver a um dia de vida normal

Liberdade. Ou como sobreviver a um dia de vida normal


Estreia esta quarta-feira, dia 21 de maio, no Filmin e nos videoclubes o último filme de Kirill Mikhanovsky: uma viagem alucinante pelos bairros de Milwaukee que o realizador descreve como uma “experiência humana”. A experiência de “atravessar um dia com dignidade”.


Vic não é mais do que um jovem igual a tantos os que hão de ter nascido e crescido e hão de viver ainda em Milwaukee. Um jovem americano de origem soviética que luta pela sobrevivência num mundo que parece ter-se insurgido contra ele: um avô russo entre episódios de violência a que pode levar a demência em casa que é preciso controlar, o trabalho como motorista de transporte de doentes e pessoas com deficiência que não pode perder. O resto é a vida, a vida no pior (e melhor) do caos em que decide apresentar-se. Give Me Freedom, o título original do filme que pela mão do Cinema Bold teve esta quarta-feira, com o título Liberdade, estreia nacional entre os serviços de videoclube das operadoras de televisão e a plataforma de streaming Filmin, é o grito mudo que ouvimos de Vic, personagem que Kirill Mikhanovsky insistiu em encontrar um jovem da vida real para interpretar e com o qual a diretora de casting Jennifer Venditti foi dar numa padaria de Nova Iorque ao fim de cinco semanas de busca: Chris Galust, tornado ator depois de Liberdade, mas até então eletricista nascido em Brooklyn, ofício que o levava a conduzir, também ele, uma carrinha diariamente.

Aqui, nesta viagem diária entre bairros de classes baixas, umas mais do que outras, de Milwaukee, Victor não pode falhar, não tem como. Muito menos atrasar-se. Da sua vida assistiremos a apenas um dia, um longo dia, diga-se, um desses dias em que a expressão mais repetida ao telefone será “estou quase aí, dá-me dez minutos”. De dez em dez minutos é como se o destino não chegasse alguma vez a estar à vista. Entre as pessoas que o trabalho o obriga a transportar e o funeral de uma familiar do avô que o fará arriscar o emprego ao encher a carrinha com um grupo de imigrantes da ex-URSS.

“Os imigrantes soviéticos, por exemplo, e a rapariga negra [Tracy, que se desloca com a ajuda de uma cadeira de rodas e a casa da qual chega já com uma hora de atraso] de Milwaukee não são pessoas que se cruzem nas suas vidas, que tenham contacto umas com as outras”, diz o realizador, numa conversa telefónica com o i a partir dos Estados Unidos. Juntou-os a todos nesta carrinha que Vic dirige (e que na realidade foi conduzida por Galust de verdade o tempo todo, como foi verdade a velocidade alucinante a que conduz e os quase acidentes que faziam já parte do argumento de Liberdade, coescrito com Alice Austen. “A carrinha é, nesse sentido, um veículo para a reunião de pessoas, pessoas que não têm normalmente contacto social entre elas. Isto tem a ver com a estrutura do argumento, que é a estrutura da vida. E a vida é um caos. Dramaturgicamente, o que criámos foi um argumento que estrutura o que não tem estrutura. Mas é uma ideia antiga, desde a Grécia, onde as artes dramáticas tinham como propósito criar estrutura para o que, de outra forma, seria caótico”.

O que Mikhanovsky diz ter querido entregar-nos com Liberdade é apenas a experiência, “a experiência humana de atravessar um dia com dignidade, de tentar viver com dignidade”, a experiência de um dia ao lado deste jovem, Vic, que diz Mikhanovsky ver como uma não personagem no momento em que arranca o filme. “Ele é um veículo, um veículo para as pessoas chegarem do ponto A ao ponto B. Nem é bem uma personagem no início, vai ganhando esse estatuto à medida que o filme avança em direção ao final. Não há muito do Victor no início, mas vai havendo cada vez mais em direção ao final. Isto acontece por causa das pessoas que transporta, por causa das pessoas que o rodeiam. Para mim, o Victor existe apenas enquanto reflexo de todas as pessoas que está a tentar ajudar, das pessoas que o rodeiam, e na parte final transforma-se em algo que já é ele próprio”. 

Torna-se “personagem”, nas palavras do realizador de Sonhos de Peixe (2006) e Gabriel e a Montanha (2017). “O interessante aqui é que, à sua maneira, o Victor também tem uma deficiência e por isso é mais confortável para ele estar entre as pessoas que transporta do que entre pessoas sem deficiência. Sendo totalmente capaz, de certa forma, ele é mais fraco do que muitas pessoas com deficiência. E está a aprender sobre a vida, sobre ele próprio, com as pessoas com deficiência”.

Há anos, muitos anos, antes de se ter feito cineasta, também Kirill Mikhanovsky desempenhou este papel. Ele que, depois de se mudar com a família para aquela mesma cidade do Wisconsin, nos longínquos anos da queda do Muro de Berlim e de dissolução da União Soviética, teve muitos empregos dos mais variados tipos, incluindo o de condutor de uma carrinha de transportes de doentes semelhante à que Vic conduz. 

Foi no regresso a Milwaukee depois de terminado um outro filme que, de volta dos seus pertences e enquanto trabalhava no argumento de “um thriller futurista”, esses tempos lhe regressaram do lugar onde ficam as memórias. Decidiu fazer a partir daí este filme que vê como um projeto muito pessoal, sim, mais pessoal depois de o ter terminado do que quando partiu para ele, a partir do que foi uma fase da sua vida. “Sim, conduzi uma carrinha daquelas há muitos anos, mas não é o facto de o ter feito que torna a experiência pessoal. Poderia ter feito com isso um filme frio, calculado”, afirma Mikhanovsky. “Não relaciono necessariamente os factos autobiográficos com o grau em que um trabalho é pessoal ou deixa de ser. Acho que se transformou num filme muito pessoal por todo o tempo e energia que lhe dediquei. É isso que faz necessariamente com que um filme se torne parte de nós”.

Pessoal ou não, Liberdade é, acima de tudo, verdadeiro. Cada minuto de ansiedade ao longo de Vic será connosco. Como se Vic fosse tão real como Kirill ter em tempos conduzido uma carrinha destas em Milwaukee, Wisconsin.