Museu Nacional do Azulejo.  O regresso depois  de um vazio “desolador”

Museu Nacional do Azulejo. O regresso depois de um vazio “desolador”


Hoje, Dia Internacional dos Museus, os museus portugueses voltam a abrir portas depois do encerramento ditado pela pandemia. O i foi até ao Museu Nacional do Azulejo, em Lisboa, perceber como será a rotina dos próximos tempos e, pelo caminho, percorreu a historia da riquíssima tradição azulejar portuguesa.


“Ia ser um ano excelente”. A constatação de Maria Antónia Pinto de Matos, diretora do Museu do Azulejo, estará, porventura, na mente de todos os responsáveis pelos museus em Portugal que, com o crescimento do turismo viram, nos últimos anos, os seus espaços com cada vez mais visitantes. Até a pandemia obrigar ao fecho de portas, o museu que guarda a história da tão portuguesa tradição azulejar já tinha recebido este ano cerca de 30 mil visitantes, números impressionantes para os meses tendencialmente mais fracos do calendário. “No ano passado tivemos qualquer coisa como 240 mil visitantes”, diz a diretora, que quando ali chegou, em 2008, se deparou com uma realidade diferente. “Tivemos 77 mil visitantes nesse ano”, lembra, enquanto nos sentamos para conversar no agradável pátio interior do museu que, com as suas paredes forradas de verdura, faz também as vezes de esplanada. Uma esplanada vazia, estado que antes do confinamento soaria a privilégio, e agora marca o passo da saudade das conversas entrecruzadas. Nestes 12 anos à frente do museu, e ao longo de uma carreira de mais de quatro décadas, a museóloga nunca tinha passado uma situação semelhante. Facto que desdramatiza: afinal, nenhum de nós tinha experienciado algo como que se viveu nos últimos tempos. “É uma situação difícil para todos”, diz, assumindo ainda assim que o pior que pode acontecer na vida de um museu é fechar portas.

 

Um recomeço A segunda fase do plano de desconfinamento que hoje se inicia traz também o fim deste encerramento excecional. A data escolhida pelo Governo para o regresso dos equipamentos culturais coincide com o Dia Internacional dos Museus, efeméride tradicionalmente de festa, e que este ano se reveste de duplo significado. Na sexta-feira, dois dias antes da abertura e o dia em que o i visitou o museu, ainda se contavam pelos dedos das mãos os funcionários que circulavam no antigo convento da Madre de Deus. “Fizemos a reunião geral ontem”, explica a diretora. E processo de reabertura ainda esperava pelos remates finais: o novo horário de funcionamento, por exemplo, ainda estava à espera de aprovação. “Tenho aqui pessoas que vêm de barco e de comboio e estamos a tentar adaptar os horários para que possam evitar os períodos de ponta”, esclarece.

Por aqui e por ali, ultimavam-se os preparativos. Na zona da cafetaria e restaurante, as mesas estão espaçadas e cada uma tem apenas duas cadeiras. As casas de banho foram retribuídas de forma a propiciar a separação, e tanto na loja como no balcão de entrada haverá um acrílico. Também os desdobráveis deixaram de estar disponíveis e só serão entregues a quem os solicitar. Relativamente às entradas, a diretora recorda que, sendo este um espaço fragmentado, e na impossibilidade de ter um vigilante em todas as salas, vai ser um desafio fazer cumprir as normas que ditam que, por cada 20 metros quadrados, só poderá estar uma pessoa.

Na Sala dos Arcos, por exemplo, caberão dois visitantes em simultâneo. “Será tudo uma questão de bom senso”, indica Maria Antónia Pinto de Matos. “Não quer dizer que haja facilitismo, as regras são para se cumprir”, frisa. “Mas privilegio as pessoas e penso que o senso comum vai ser muito importante. A limpeza é quase meio caminho andado”, considera. As entradas vão ser espaçadas, “para poder haver escoamento”, e aqui a diretora confia na gestão das equipas que estiverem a trabalhar. “Conto muito com a experiência, é tudo uma questão de equilíbrio”, desdramatiza.

Já dentro do museu, todas as “apetecíveis” réplicas dos azulejos – que antigamente poderiam ser tocadas pelos visitantes – foram retiradas, será privilegiado o pagamento em dinheiro e, por enquanto, não haverá visitas de grupo. “Já tínhamos marcações desde o ano passado que tivemos que cancelar”, conta, enquanto nos fala daquilo que será a nova normalidade. Já o elevador agora passará a levar um visitante de cada vez e, como em todos os espaços fechados, o uso de máscaras tornou-se obrigatório.

 

Um vazio confrangedor

É então de máscara que o vigilante à porta nos recebe, e é de máscara que prosseguimos para a visita – a primeira que se faz nestes moldes. O eco das vozes enquanto vamos percorrendo um museu vazio têm qualquer coisa de metálico. Mas também é mágico percorrer tantos séculos de arte sem distrações. Para a diretora, ver o espaço sem ninguém não é uma novidade. “Estou aqui muitas vezes fora de horas, muito cedo e muito tarde”, diz (Maria Antónia Pinto de Matos é também, em acumulação, diretora do Museu da Presidência da República). Ainda assim, reconhece que é diferente estar neste espaço sem gente por causa de um vírus. “É muito confrangedor”, nota, antes de parar para refletir sobre novo adjetivo. “É doloroso, até”.

Durante o estado de emergência, a responsável dirigiu-se várias vezes à instituição para recolher documentos de que precisava para trabalhar, à semelhança do que aconteceu com outros funcionários. Já a vigilância, e não poderia ser de outro modo, manteve-se durante 24 horas. E os serviços de limpeza também continuaram a cuidar diariamente do espaço. Na semana passada, o espaço foi todo higienizado – e este cuidado é, acredita a diretora, o busílis para manter nos próximos tempos um museu seguro.

E como vão fazer com os filtros dos ares condicionados? “Pois, não temos ares condicionados. Usamos aquecedores no inverno e ventoinhas no verão”, diz, lembrando a falta de investimento num dos poucos museus do país que consegue ser autossuficiente. Para lá das entradas, a loja do museu conta-se entre uma das mais rentáveis da Direção Geral do Património Cultural. Mas na porta de entrada do espaço um cartaz dá conta das dificuldades que a instituição tem vindo a experienciar nos últimos anos: “Loja fechada por falta de pessoal”. Aqui, tal como tem acontecido noutras instituições, a falta de vigilantes é um dos sintomas do desinvestimento e uma das grandes lutas do dia a dia no museu. No ano passado, foi de tal forma evidente que chegaram a deixar entrar, às horas mais mortas, visitantes sem pagar. E são os visitantes, garante a diretora, os maiores relações públicas de um museu cuja presença na comunicação social e nas redes não têm o peso de outras instituições.

É nas notas de agradecimento e nos contactos feitos por quem ali passa que o Museu Nacional do Azulejo percebe que, efetivamente, os que o visitam chegam por recomendação de alguém próximo. Há gente que retorna dezenas de vezes, outros que vão por que alguém famoso por ali passou, como a assistente de Oprah Winfrey. E depois de a primeira-dama chinesa, Peng Liyuan, ter visitado o museu aquando a visita de Estado de Xi Jinping a Lisboa, em 2018, houve um reflexo direto no fluxo de turistas vindos da China.

 

Dois percursos

A popularidade é fácil de explicar: aqui, os visitantes encontram a simbiose entre o edifício e a coleção – e não é de somenos afirmar que Museu Nacional do Azulejo tem no convento da Madre de Deus, que data de 1509, a melhor casa que poderia almejar. Afinal, entre os muitos chamarizes que justificam a afirmação, conta-se a igreja mandada altear por D. João III por causa do rio que ali chegava e molhava os pés das clarissas, que é revestida por painéis de azulejos encomendados aos mestres holandeses e que vieram mudar o paradigma da azulejaria portuguesa. Até então, o azulejo era feito por artesãos, mas tão fina encomenda passou a fazer com que os painéis passassem a ser pintados por artistas, dando assim início ao áureo período dos mestres, no início de setecentos. Depois, a coleção aqui exposta fala por si: vamos dos azulejos hispano-mouriscos e da herança mudéjar, passamos pela azulejaria vinda de palácios, igrejas e conventos para o século XIX, em que os azulejos tomam as fachadas e passam a colorir as ruas, e continuamos até às propostas contemporâneas.

Séculos de saber acumulados, numa expressão artística que atravessa o imaginário coletivo e que, também por isso, evoca afetos. “A azulejaria portuguesa está no espaço para o metamorfosear”, lembra a diretora enquanto passamos pelo Retábulo da Nossa Senhora da Vida, de 1589, que é um dos muitos ex-líbris de um museu que continua a receber peças para endossar as suas reservas.

A presença da rainha D. Leonor, que o mandou construir e deixou ordens para ali ser sepultada em campa rasa para que todos a pisassem, continua a pairar no local a que chamou de casa. A sua casa “perfeitíssima”. “Costumamos brincar e dizer que, afinal, D. Leonor deixou essas ordens não por uma questão de humildade, mas para não ser esquecida”, conta a sorrir a nossa interlocutora.

E é aqui, num museu “na verdadeira aceção da palavra”, que é referência lá fora também pelo seu núcleo de conservação e restauro e que hoje propicia todos os tipos de encontros – de estudantes nacionais e estrangeiros (têm vindo muitos da República Checa), de voluntários, de visitantes de todos os cantos do mundo – que se encontra um dos grandes testemunhos da Lisboa pré terramoto. A “nossa querida vista da cidade”, assim a apelida a diretora. Olhamos para a “Grande Vista de Lisboa”, o silhar de azulejos (revestimento que ia do chão até ao meio da parede) aqui colocado à altura de um painel, proveniente do antigo Palácio dos Condes de Tentúgal, e no qual termina o circuito da visita.

Vai ser preciso limpar o painel em breve, e estão a estudar qual foi o material usado na última intervenção para poder agora replicar o processo. A partir de hoje, essa Lisboa que já não existe desde 1755 volta a poder ser vista ao vivo. Lá fora, uma outra Lisboa aprende novamente a sair à rua.