É difícil encontrar outro nome do mundo desportivo que tenha marcado para sempre a década de 1990. Michael Jordan é esse nome. Saltou para a fama no seio da narrativa vencedora do capitalismo global na mesma altura em que o comunismo foi derrotado, com a queda da União Soviética: mais do que um jogador, Jordan foi um ícone cultural, o rosto da Nike, McDonald’s e outras multinacionais norte-americanas. Jordan levou a liga profissional de basquetebol, a NBA, a todo o mundo com a sua habilidade incontornável e competitividade quase patológica. Durante muito tempo, NBA e Jordan foram sinónimos.
Esta segunda-feira são lançados os últimos episódios de Last Dance, documentário sobre a sua vida produzido pela ESPN e reproduzido na Netflix. Mas têm sido feitas críticas à narrativa unilateral e endeusadora de Jordan em Last Dance, cujas audiências dos dois primeiros episódios chegaram a uma média de 6,1 milhões, as maiores para uma estreia de um conteúdo da ESPN. É um documentário ou uma produção de marketing?
A série documental de dez episódios traça a jornada de Jordan até à vitória no sexto troféu – a sua segunda tripla. Ao longo desses episódios interliga-se a história de Michael Jordan desde os seus tempos como jogador amador, a carreira profissional na NBA que se iniciou em 1984 nos Chicago Bulls, a famosa Dream Team que ganhou os Jogos Olímpicos de 1992, a morte do pai, o seu problema com os jogos de apostas e o completo domínio dos Bulls até à vitória nas finais contra os Utah Jazz em 1998 – o último troféu da lenda do basquetebol, no ano em que se retirou pela segunda vez (ainda voltou aos pavilhões para jogar nos Washington Wizards). A série é apelativa, fresca e reaviva faixas musicais dos anos 1990 que nos trazem uma nostalgia de outros tempos.
Como qualquer história mitológica – os deuses gregos também tinham defeitos, aproximando-os dos comuns mortais –, as imperfeições de Jordan não ficam para trás em Last Dance: o importante a reter é como são representadas.
O seu talento e disciplina não precisavam de ser retratados: eram já factos estabelecidos. Mas, no documentário, Jordan conta uma história que dá a imagem da disciplina com que se regia para caminhar para a vitória. Procurava os seus colegas no seu ano de estreia na NBA, num evento pré-temporada. “Acho que foi em Peoria. Foi num hotel e estava a procurar os meus colegas”, recorda. “Comecei a bater às portas. Chego a uma, bato e começo a ouvir umas vozes” a pedirem silêncio: ‘Alguém está lá fora. Quem é?’ E eu respondi: “MJ”. Aí começam todos a rir-se. ‘Não se preocupem, é só um rookie”. E abrem a porta ao estreante. Praticamente estava lá toda a equipa e havia coisas que nunca tinha visto, como miúdo que era. ‘Tens as tuas linhas de cocaína aqui, a tua marijuana acolá, mulheres aqui’”, conta, dizendo ter respondido: “Estou fora”.
Jordan tinha muitos inimigos – ou, pelo menos, criava-os para manter a sua energia competitiva viva – e esteve envolvido em várias polémicas, mas ao longo da entrevista manteve-se firme contra as críticas. A polémica mais representada em Last Dance, ao longo de todos os episódios, é o seu duelo com o dirigente dos Bulls Jerry Krause. Ao longo de todos os episódios, há uma vilificação de Krause, representando-o como o grande culpado pelo fim da dinastia de Chicago.
“Nunca deixaria alguém que não está a vestir um uniforme e a jogar todos os dias ditar o que nós fazemos num pavilhão de basquetebol”, afiançou Jordan num dos episódios. Parece acertado, e Krause aparentava interferir demasiado numa equipa que já estava a ser considerada a melhor de sempre – a decisão de não continuar com o treinador Phil Jackson, hoje o mais medalhado de sempre na NBA, foi do dirigente. Para quê mexer nas peças do tabuleiro?
Mas há um problema: o antigo dirigente da equipa de Chicago morreu há três anos, não podendo fazer o contraditório. Mathew Miranda, autor que escreve frequentemente sobre a NBA para o SB Nation, site da empresa Vox Media, assina um artigo na revista Jacobin com o título: “Michael Jordan era um ícone capitalista. Last Dance é o seu anúncio para criar o mito”. Miranda faz uma comparação entre o ímpeto competitivo de Jordan e Krause. “Uma energia implacável para ganhar, para mostrar ao mundo que não estava satisfeito”, escreve. “Era isso que mantinha Krause”. “Se alguém podia apreciar essas qualidades num competidor, devia ser Jordan. Mas isso não encaixa no mito – e o mito, como o homem por trás dele, está agora para sempre à venda”.
O realizador do documentário mostrou-se surpreendido por ter tido autorização para retratar tanta polémica sobre Jordan. Os colegas de equipa, por exemplo, admitem em Last Dance que a lenda era um mau companheiro, mas acabam sempre por concluir que “foi pelo melhor”. Afinal, ganharam seis campeonatos e duas triplas, e foram considerados a melhor equipa de sempre.
O que a ESPN esconde nos créditos finais é que a empresa de Jordan, Jump 23, teve a decisão final sobre a edição do documentário: o que a lenda não quis que se mostrasse, não saiu. “Se estás lá a influenciar o facto de ser feito [o documentário], isso significa que certos aspetos não os queres lá, não vão lá estar. Ponto final”, escreveu o produtor de filmes Ken Burns no Wall Street Journal. “Não é forma de se fazer bom jornalismo”.
As gravações de Last Dance, onde podemos ver mais de 500 horas de filmagens dos bastidores da equipa de Chicago, estavam enterradas numa biblioteca em Nova Jérsia há mais de 20 anos. E quando decidiu Jordan dar finalmente autorização para as mostrar, quando raramente se tinha pronunciado sobre esses anos? Quando os Cleveland Cavaliers, empoderados pela já lenda Lebron James, deram a reviravolta histórica contra os Golden State Warriors em 2016: nunca uma equipa tinha ultrapassado o registo de três derrotas numas finais da NBA (à melhor de sete) e conseguido arrecadar o troféu. A coincidência salta à vista: depois dessa vitória, James afirmou sentir-se o melhor jogador de sempre, desencadeando o debate sobre qual dos dois foi o melhor.
Last Dance debruça-se sobre outra polémica sobre a qual a antiga estrela dos Chicago Bulls nunca se tinha pronunciado. Jordan cresceu na Carolina do Norte, tendo feito também a sua carreira amadora na universidade desse estado. Em 1990, Harvey Grant foi o primeiro político negro a candidatar-se ao Senado norte-americano, correndo pelo lugar do republicano Jessie Helms, conhecido pelas suas posições descaradamente racistas: nesse ano, publicou um anúncio que mostrava uma mão branca a destruir uma candidatura de emprego, com a voz por trás a dizer que a pessoa precisava de um emprego mas que este tinha sido atribuído a uma minoria.
Jordan nunca apelou ao voto em Grant e na altura foi citado como tendo dito: “Os republicanos também compram sapatilhas”. Em Last Dance, o ex-basquetebolista remeteu esse comentário para uma piada que havia dito entre colegas. Mas não recuou e defendeu a sua posição apolítica. “Um traço que não envelheceu com a idade”, mesmo com o ressurgimento do ativismo desportivo, escreveu Bryan Graham no Guardian. E nas mais de 100 entrevistas realizadas para o documentário, Craig Hodges, atleta que ajudou Jordan a conquistar os seus dois primeiros campeonatos e um dos maiores críticos da lenda pela decisão de não apoiar o candidato negro, não teve direito a ser entrevistado.