Higienizar é diferente de limpar, porque a primeira operação visa a higiene ou a conservação da saúde. Limpar é uma higienização menor, sem a preocupação de cuidar da saúde. Aplicando à polémica melodramática do pagamento de mais uma tranche de 850 milhões de euros ao Novo Banco, aos ditos, às cenas e às encenações, pode dizer-se que Mário Centeno, no anterior mandato, higienizou a solução de Governo, com suporte à esquerda, mas, no atual quadro, está na iminência de ser limpo. A verdade é que qualquer que seja a perspetiva, os intervenientes são os mesmos, sem nenhum tipo de higienização. O Presidente da República é o mesmo. O primeiro-ministro é o mesmo. A oposição que viabilizou os Orçamentos da fase da higienização, com cativações, e da limpeza, com contradições, é a mesma, com destaque para o BE, o PCP, o PEV e o PAN. Todos viabilizaram Orçamentos, todos querem agora contribuir para a limpeza de Mário Centeno. Há em tudo isto uma conveniência própria do modus operandi da liderança política: conjugar para que outros façam o pretendido, numa deriva em que os fins justificam os meios. Centeno foi útil até ser o Ronaldo das Finanças nas eleições legislativas; depois passou a jogar a central; agora, o chefe do clube reafirmou a confiança para, de seguida, dispensá-lo. O obreiro das “contas certas”, o ministro mais popular fez no Novo Banco o que estava previsto, porque mesmo que outros quisessem diferente, não fizeram o suficiente para alterar o quadro das obrigações que alguém assumiu em nome do Estado, com a conivência dos protagonistas políticos, incluindo os da esquerda. Todos viabilizaram Orçamentos, todos são responsáveis politicamente.
Fragilizada a estrela da companhia, com o beneplácito presidencial, será sempre mais fácil uma saída pela porta dos fundos, ainda que com louros nominais e insuficiências evidenciadas pela pandemia de uma legislatura de convergências à esquerda, em que o país desanuviou, para agora voltar a ficar combalido e tenso.
Tenso no exercício de sobreviver, de desconfinar, de reajustar e de ter de proceder a demasiadas aprendizagens para fazer o que sempre fez. Sem incorporar o risco, sem ponderar a sua relevância para o outro e para a comunidade ou sem pensar muito no dia de amanhã.
Tenso no sair à rua, depois de tantas semanas num mundo protegido, em casa.
Tenso na evidência de que entre a narrativa e a realidade, ou a perceção dela, há um hiato considerável, que em nada contribui para o resgate da confiança. Haverá que fazer muitas reaprendizagens para o quotidiano e para as outras emergências, porque o risco não se esgota na pandemia. Existirão muitas consequências concretas para a vida das pessoas e das empresas que escapam à possibilidade que alguns protagonistas políticos pretendem de, aos interesses eleitorais do costume, somarem ainda a despesa das novas necessidades.
Neste turbilhão de aprendizagens para a segunda fase de desconfinamento, com Centeno fragilizado pela ida de carrinho na Autoeuropa, António Costa sinalizou uma expetativa sólida na recandidatura e reeleição de Marcelo Rebelo de Sousa. Da mesma forma que, se queriam evitar o pagamento de 850 milhões de euros ao Novo Banco, deveriam ter agido em conformidade, desejar a presença de Marcelo num repasto oficial e visita à fábrica em 2021 implica fazer alguma coisa para que isso aconteça. Nessa linha de montagem existem três cenários lineares possíveis: o PS tem candidato; o PS não apoia ninguém e dá liberdade de voto; ou o PS apoia a reeleição de Marcelo. É certo que temos mais com que nos preocupar, os cidadãos e o Governo, mas a relevância ou irresponsabilidade de colocar o tema na ordem do dia, com sinais claros, é própria de quem não partilha dos fundamentos democráticos do partido. Vincular sem auscultar é um padrão que se repete uma vez mais – numa das últimas aparições do exercício, o PS vinculou-se com o memorando da troika sem que o partido se tivesse pronunciado. Muitos dos que contribuíram para a sua elaboração, que o subscreveram à revelia do partido e que o renegaram, permanecem na ribalta. Isso explica muita coisa.
Não apreciei o exercício laureado de Centeno de gato escondido com rabo de fora, nem aprecio o exercício idolatrado de Marcelo com o gato à vista de todos. Nem um nem outro terão algum dia a minha validação, mas há limites para a habilidade política, para a disposição arbitrária de um acervo de valores e princípios e para a velha política.
Portugal precisa de exercícios arejados, transparentes, explicativos, coerentes, participados e mobilizadores, com senso e sentido de futuro, além do agrado eleitoral ou do quotidiano. Infelizmente, também é isso que se joga no atual quadro pandémico e no pós-pandemia.
Hoje é dia de regresso à atividade exterior para mais alguns, outros permanecerão num exigente desafio de equilíbrio em teletrabalho e demasiados já foram fustigados pelos impactos diretos e indiretos da pandemia. Hoje é dia de higienizar para novos futuros e começar a limpar o que deve ser limpo: as injustiças, as contradições, mas, sobretudo, a incerteza que já tomou muitas famílias, empresas e territórios em relação a certezas bem conhecidas dos tempos difíceis.
Em dia de segunda fase do desconfinamento, importa ter presente os riscos e agir em conformidade para que os resultados sejam os pretendidos. Na dúvida, é fazer o inverso deste episódio em torno do Novo Banco. Se é para proteger do contágio, é colocar a máscara, manter a distância, higienizar as mãos com frequência e observar a etiqueta respiratória. Antes que o bicho pegue.
NOTAS FINAIS
AOS DE SEMPRE O estado de necessidade da pandemia aguçou o engenho em muitas dimensões e sublinhou a emergência de novas realidades. Sendo certo que muitos estavam em casa, que a programação televisiva é o que é e que o cabo tem limites, o fenómeno do Como é que o Bicho Mexe? de Bruno Nogueira projeta-nos para um novo patamar da predisposição para novos conteúdos audiovisuais, num contexto de grande dificuldade para o setor e para a cultura.
AOS DE AMANHÃ Estamos confrontados com um enorme desafio. Temos fenómenos globais, como a pandemia ou as alterações climáticas, não temos respostas globais para os problemas nem temos autossuficiência para as necessidades de emergência decorrente dos riscos. Menos globalização e mais nacionalismo podem ser uma tentação, mas não resolvem.
Escreve à segunda-feira