Crime e castigo, disse ele


Ventura descreveu “populismo penal” como “o processo pelo qual os políticos (…) usam para sua vantagem aquilo que creem ser a generalizada vontade de punição do público”.


O recente crime de Atouguia da Baleia, o assassinato de uma criança de nove anos, alegadamente pelo seu próprio pai, não pôde deixar de causar natural emoção e revolta.

As reações foram as mais diversas, mas a que mais despertou atenções, pelo menos nas redes sociais, foi a do deputado eleito pelo Chega, que não perdeu a oportunidade para tentar, mais uma vez, fazer valer a sua tese da necessidade de aumentar a moldura penal para determinados crimes, defendendo a prisão perpétua.

Aliás, André Ventura, embora garanta não defender a pena de morte para Portugal, afirmou também, quando era autarca em Loures, que não o choca que ela seja aplicada a terroristas ou pedófilos.

Opiniões, aliás, bem diferentes das que defendeu na sua tese de doutoramento na Universidade de Cork, na Irlanda, em 2013, consultada pelo Diário de Notícias, que citou um pequeno excerto onde o agora deputado fala de “populismo penal”, que descreve como “o processo pelo qual os políticos aproveitam e usam para sua vantagem aquilo que creem ser a generalizada vontade de punição do público”.

Ter-se-á, seis anos depois, inspirado neste “populismo penal” para inscrever na sua agenda as alterações que agora defende, numa demonstração clara do oportunismo que caracteriza os políticos populistas.

Portugal foi considerado, em 2019, o terceiro país mais seguro do mundo, só atrás da Islândia e da Nova Zelândia, no Global Peace Index. Querer fazer crer à opinião pública o contrário, isto é, a propósito de um crime hediondo, defender a necessidade do aumento das penas de prisão, em nome da segurança dos cidadãos, é uma típica manobra demagógica.

O populismo precisa de explorar emoções, de estimular a indignação, de forjar inimigos, para se colocar no lado da barricada daquilo a que chama “o povo”. E, para os populistas, só eles representam “o povo”, que vêm como uma entidade homogénea, moralmente pura.

André Ventura segue essa cartilha. Afirma estar contra as elites que tomaram conta do Estado, pega em todos os temas onde vislumbra hipótese de ganhos num setor da opinião pública desencantado ou, até aqui, indiferente.

A questão que deve ser analisada é a da ação dos líderes políticos populistas quando conquistam o poder. É fácil ver exemplos como a Hungria de Viktor Orbán, a Turquia de Erdogan ou a Venezuela de Maduro.

E é importante perceber também que os populistas jogam inicialmente no campo da democracia, são eleitos. O problema é que rapidamente se apropriam do Estado, alterando leis, incluindo a própria Constituição, atacam a justiça, a comunicação social e todos os setores que perturbem a sua ação.

E, não tenhamos dúvidas, aqueles que agora criticam – muitas vezes, com razão – as clientelas políticas são os primeiros que, uma vez instalados no poder, criam a sua própria malha clientelar.

Será bom que não nos iludamos com este verdadeiro canto de sereia. E, sobretudo, que a democracia se saiba reorganizar, aproveitando a seu favor os sinais que os populistas despertam na opinião pública.

Combatê-los é defrontá-los cara a cara, com argumentos claros e, sobretudo, com obras, porque como afirmou o sociólogo alemão Ralf Dahrendorf: “O populismo é simples. A democracia é complexa”.

 

Jornalista