Há muitos que estão agora a fazer figas, porque com tanto azar para tantos, há sempre alguns poucos a quem a sorte sorri. É uma espécie de lotaria que nasce em tempos de peste. Nem só das máscaras, de gestos complicados, tentando montar as defesas contra o inimigo que não se vê, nem só de uma difusa sensação de pânico se vai fazendo a fita da pandemia do coronavírus. Há também aqueles que, descontando por um momento as vítimas, o sofrimento, a hecatombe económica, olham para esta emergência sanitária como uma moratória imposta ao ritmo alucinante com que fomos submergidos pela tempestade do capitalismo. E quando não parecia haver forma de negociar tréguas, foi preciso uma peste para nos reconduzir a uma vida mais local, mais tranquila, ainda que os motivos de ansiedade tenham redobrado.
A pandemia, em alguns aspetos, veio fazer justiça a alguns danados, numa súbita inversão das prioridades, que fez o foco mediático largar os mexericos, as devassas e indiscrições das celebridades para se concentrar em dramas mais vastos. Com a maioria das salas de cinema encerradas em todo o mundo, aos 84 anos Woody Allen descobriu que a sua comédia “A Rainy Day in New York”, que, depois de enfrentar inúmeros percalços desde que foi filmada em 2017, se estreou em alguns países no fim de semana passado, e foi recebida com uma gargalhada arrepiante.
Num fim de semana normal, um filme que arrecadasse algumas centenas de milhares de dólares nem merecia registo no caderno das torres de controlo. Uma estreia que não dê algumas dezenas de milhões está afastada das primeiras posições no top dos filmes mais vistos à volta do globo. Mas agora que um vírus parece ter exposto o calcanhar de Aquiles da globalização, aos 84 anos, o judeu nova-iorquino que se diz um cineasta menor, agarrou mais um mote para que a sua lenda, sem deixar de meter água por todos os lados, avance anedoticamente, coxeando e desgastando todos aqueles que esperam que Allen simplesmente se deite, role para a sua sepultura e desapareça.
De acordo com o site Box Office Mojo, a comédia que foi renegada pela Amazon Studios bem como por parte de alguns dos seus protagonistas, saiu coroada com receitas de pouco mais de 344 mil dólares na Coreia do Sul, um dos poucos países que, depois de ter sacudido a epidemia de forma enérgica, se atreveu a reabrir quase sem restrições a sua economia, o que bastou para esmagar a competição nas salas de outros países, incluindo nos EUA onde o filme continua por estrear. Além do país de Bong Joo-ho, o realizador de “Parasitas”, as poucas salas que se mantêm abertas em países como a Noruega, a Austrália e os EUA não têm conseguido salvar o calendário e, por isso, Allen arrebata a coroa dos malditos, numa altura em que os estúdios preferem guardar os seus cartuchos para quando forem levantadas as principais restrições e a vida retome alguma normalidade. Neste momento, Hollywood voltou a ser uma modesta fábrica de sonhos que, em vez da sua rede imensa de salas espalhadas por centros comerciais, depende agora desses parques de estacionamento virados para um gigantesco ecrã em pequenas povoações nos cus de judas de uma América esquecida.
Quanto à pequena e divertida vingança de Allen, o eterno pessimista, o neurótico misantropo que há décadas prefere o isolamento do seu apartamento aos vórtices da mundanidade, a sua amaldiçoada comédia conseguiu já receitas de cerca de 20 milhões de dólares à volta do globo, e tem provado uma resiliência inesperada quando, por esta altura, e segundo os planos iniciais de distribuição, já deveriam estar a fazer as suas gracinhas no poleiro do pequeno ecrã. Com Timothée Chalamet, Selena Gomez, Elle Fanning e Jude Law nos principais papéis, o filme era para ter chegado às salas de cinema nos EUA em 2018, mas a Amazon foi empurrando com a barriga este seu rebento que, de um momento para o outro, se tornou indesejado.
O desaguisado entre o realizador e o estúdio prendeu-se com o esforço feito pelos seus filhos com Mia Farrow para requentar as alegações de abusos sexuais que enfrenta desde a década de 1990, tendo sido ilibado por duas vezes em tribunal. Acontece que, com a campanha do movimento MeToo para que as suspeitas envolvendo figuras poderosas do mundo do espetáculo, dos negócios e da política, muitas das antigas alegações viessem de novo à tona. E Allen tem em Ronan Farrow a sua Némesis, tendo o filho sido um dos jornalistas cuja investigação aos abusos sexuais cometidos por Harvey Weinstein levou a que a cultura de impunidade em Hollywood ficasse seriamente comprometida. E se, em tempos, Ronan se mostrara um tanto reticente em relação ao testemunho da sua irmã, Dylan, que diz ter sido abusada pelo pai quando tinha 7 anos, reviu a sua posição, e atirou-se a Allen com a ferocidade e os galões que adquiria como jornalista, entre os quais o Pulitzer.
A controvérsia foi relançada e, em consequência, Chalamet e Gomez, bem como Rebecca Hall – que foi lançada para o estrelato com o seu papel noutro filme de Allen, “Vicky Cristina Barcelona” (2008), com uma interpretação que lhe valeu a nomeação para um Globo de Ouro como melhor atriz -, decidiram assinar a sentença de morte social do cineasta, e fizeram doações no valor dos seus salários ou até mais do que isso para o fundo Time’s Up, destinado a combater as situações de abusos sexuais no local de trabalho. Allen não se mostrou tão ofendido ou revoltado como se poderia esperar, e na sua autobiografia, “Apropos of Nothing”, publicada há algumas semanas, diz que Chalamet e companhia não destoaram do oportunismo cínico que caracteriza Hollywood e se limitaram a seguir o conselho dos seus agentes, garantindo que as suas carreiras não ficariam manchadas por este episódio. Se Rebecca Hall jurou que não voltaria a trabalhar com Allen, e disse estar arrependida de o ter feito no passado, Jude Law mostrou um pouco mais de fibra, e afirmou que tinha imensa pena por ver o filme ser chutado do calendário das estreias nos EUA. “Adoraria vê-lo numa sala de cinema. As pessoas trabalham no duro e deram muito de si mesmas, incluindo eu”, disse o ator britânico ao The New York Times, em 2018. Quanto às alegações contra Allen, o ator teve a decência de ser o único a assumir que, não sabendo a verdade, só lhe restava ficar em silêncio.
Mais tarde, Allen processou a Amazon pedindo uma indemnização de 68 milhões de dólares, afirmando que o gigante do streaming tinha recuado de um acordo assinado em agosto de 2017 e ao abrigo do qual os seus próximos quatro filmes seriam financiados por aquele estúdio. E acusou ainda o estúdio de se acobardar perante alegações que não eram desconhecidas, recusando-se a lançar “A Rainy Day in New York”. Allen adianta que a Amazon se limitou a erguer uma muralha de vagas justificações, deixando cair o seu filme e os outros três filmes que tinha em desenvolvimento.
Por seu lado, a Amazon responsabilizou Allen por ter piorado as coisas para o seu lado, sabotando os esforços do estúdio para promover os seus filmes, e fê-lo com comentários sobre o movimento MeToo e voltando a alimentar a controvérsia, lavando a roupa suja do casamento com Mia Farrow e das sequelas que este teria provocado na relação com os seus filhos. Se ninguém pode esperar que Allen deixasse de se defender de uma nova vaga de denúncias que não fez mais que reciclar velhas alegações, o facto é que a sua autobiografia, ao dedicar boa parte das suas páginas ao assunto, torna mais difícil que este seja esquecido até por aqueles que, admirando a sua obra, preferem não ter uma opinião sobre algo que se passou debaixo de águas tão turvas que, à superfície, é impossível discernir o que é verdade e o que é mentira.