Quando, em Abril de 1970, Paul Celan morre nas águas do Sena, é o “Hölderlin do nosso tempo”, como lhe chamou Nelly Sachs, que desaparece, selando uma obra poética que desceu ao mais fundo dos infernos, onde já “Ninguém animará pela palavra o nosso pó”, onde a “cicatriz do tempo/ abre-se/ e afoga a terra em sangue”. Nascido em Czernowitz, hoje território romeno, com o nome Paul Pessakh Antschel, Paul Celan manteve com a língua alemã uma relação tumultuosa, ambivalente, obrigando-a a pensar e a dizer aquilo que muitos gostariam, ainda hoje, de esquecer. Afinal, a língua de Goethe, de Hölderlin, de Schiller, e igualmente aquela em que Celan sempre escreveu – numa conhecida passagem fala da poesia como de uma “inelutável unicidade da língua” –, era também a daqueles que exterminaram o seu povo, que montaram uma precisa, e por isso tanto mais terrível, máquina de morte que veio cumprir séculos de antissemitismo. A famosa árvore de Goethe em pleno campo de concentração de Buchenwald é uma imagem, daquelas que nos faz subitamente estancar, onde esta dificuldade se mostra de forma particularmente evidente – além de qualquer comoção humanista. E é este acontecimento que, mais do que tornar impossível a poesia, como pretendeu a dada altura Adorno, vai delimitar a própria possibilidade da poesia – neste sentido, numa das declinações que o filósofo alemão fará do veredicto, já só há poesia depois de Auschwitz.
“A poesia alemã segue, julgo eu, caminhos diferentes dos da francesa. Trazendo na memória o que há de mais sombrio, tendo à sua volta o que há de mais problemático, por mais que actualize a tradição em que se insere, ela já não consegue falar a linguagem que alguns ouvidos benevolentes parecem ainda esperar dela”
O que há de mais sombrio sabemos bem o que é: o processo burocrático de morte, como lhe chamou Raul Hilberg, o grande historiador da perseguição aos judeus – num livro monumental, ainda hoje por traduzir – e que vitimou milhões de judeus às mãos do barbarismo nazi. É certo que podemos ler Paul Celan segundo outras linhas, que não passam necessariamente pela destruição calculada dos judeus na Europa e que se ligam à forte tradição, que vem de Mallarmé, de uma poesia da poesia. Mas a leitura e a crítica devem, também, recordar as suas datas, saber posicionar-se dentro de um campo complexo. E, nesta medida, quando se tenta tornar igual o regime nazi e o soviético (que é uma outra forma de relativizar os campos de concentração, como se houvesse um parentesco entre os campos de morte nazis e o Gulag), quando se observa a proliferação abjecta de cruzes católicas junto a Auschwitz, quando certos sectores tentam parasitar esse acontecimento histórico, como se os campos de concentração não tivessem sido elaborados para tratar da questão judaica, quando o negacionismo prolifera – um conhecido historiador francês dizia, relativamente a este último, que não se discute com negacionistas, mas discute-se o negacionismo –, talvez seja importante voltar a realçar tanto a poesia de Celan, cujo centenário se celebra este ano, mas também a ligação que este e a sua poesia sempre mantiveram com os campos de morte – não, claro, que a poesia, e em particular a de
Celan, possa alguma vez contrariar o abismo da abjecção, ou surja como barreira ao barbarismo.
E talvez uma das lições mais importantes de Celan, se assim se pode dizer, seja exatamente esta: dos campos nada sai, nenhum ensinamento, nenhuma lição, nenhuma moral – o contrário é desde logo torná-los produtivos, inseri-los numa qualquer economia, como se alguma coisa de bom pudesse sair do horror mais extremo. Daí, de facto, que esta poesia comece por fazer desaparecer todo o palavreado oco do lirismo, toda aquela beleza afectada e pomposa que a poesia supostamente teria segundo uma concepção ainda hoje demasiado disseminada. Mas não é apenas o palavreado oco do lirismo que desaparece. Com ele, desaparecem também toda e qualquer réstia de musicalidade, de harmonia, que agora só pode ser entendida a partir desse abismo sem fim que não torna possível qualquer narrativa, qualquer matéria vivida que viesse preencher a palavra poética – mas desaparece, também, qualquer intuito mimético, qualquer ligação que a poesia pudesse ainda ter com a experiência, como se entre palavras e coisas já nada mais sobrasse que uma memória carregada de cinza.
“Leite negro da madrugada bebemos-te de noite
bebemos-te ao meio dia e pela manhã bebemos-te ao entardecer
bebemos e bebemos
na casa vive um homem os teus cabelos de oiro Margarete
os teus cabelos de cinza Sulamith ele brinca com as serpentes
e grita toquem mais doce a música da morte a morte é um mestre que veio da Alemanha
grita arranquem tons mais escuros dos violinos depois feitos fumo subireis aos céus
e tereis um túmulo nas nuvens aí não ficamos apertados”
A Guernica da poesia, como afirmou Otto Pöggeler, “Fuga da Morte” (Todesfuge), aqui na tradução de João Barrento e Yvette Centeno – durante bastante tempo esgotada mas felizmente já reeditada –, com as suas repetições, com o ritmo resgatado ao absurdo e ao abismo – ele remete para música que seria tocada nos campos – surge como um monumento em que a poesia se mede face a esse “acontecimento sem resposta”, como dizia Blanchot – e a poesia actual mede-se face ao quê ou a quem?
Celan, no entanto, distanciou-se progressivamente de “Fuga da Morte” – sem nunca renegar o poema, no entanto. Talvez ainda houvesse nele a memória de uma possibilidade anterior a Auschwitz, talvez ele ainda não tivesse chegado ao fundo do rigor e da concentração da palavra que faz com que até o branco se torne nesse olho “estrangeiro: mudo/ sob a pálpebra de pedra.”.
“O último a falar” – Primo Levi, com indisfarçável dificuldade face a esta poesia, dizia que se tratava de uma linguagem semelhante à de “alguém que está para morrer”: é este o título de um pequeno texto que Blanchot, editado pela Averno numa bela tradução de Fernanda Bernardo, consagrou a Celan e onde este rigor, esta “tensão extrema de linguagem” é colocada em evidência.
“E o que nos fala, nestes poemas (…) é que este branco, estas palavras, estes silêncios não são pausas ou intervalos, que permitem a respiração da leitura, mas pertencem ao mesmo rigor, aquele que não autoriza senão um mínimo de relaxamento, um rigor não verbal que não estaria destinado a ser portador de sentido, como se o vazio fosse menos uma falta do que uma saturação, um vazio saturado de vazio”
Conhecido pelo seu hermetismo, por uma poesia particularmente difícil de decifrar – talvez fosse mais rigoroso dizer que se trata de uma condenação –, densa mas obliquamente referencial, Paul Celan nunca gostou muito desse veredicto demasiado apressado que faz com que, muito provavelmente, nunca pudesse ganhar algo como o Nobel (mas Nelly Sachs, de quem foi amigo e correspondente, ganhou-o). Di-lo, aliás, de forma oblíqua, mas enfática, quando rejeita o poema absoluto (“não, é mais que certo que não existe, não pode existir, tal coisa!”), distanciando-se, desta forma, de uma poesia da poesia que, em última análise, se torna estéril e virada sobre si mesma. Mas isso não implica, como já se viu, que depois da noite sem fundo que a sua poesia atravessa reste algo da dimensão mimética ou representativa (o testemunhal, em Celan, terá sempre de ser equacionado de outra forma).
“A parte da neve, a prumo, até ao fim,
no vento que se levanta, diante
das cabanas para sempre
defenestradas:
sonhos rasos saltitam
sobre o
gelo estriado;
arrancar
as sombras das palavras, empilhá-las
à volta da armação
Na vala de água.”
Balbucio de quem atravessou o que de mais sombrio teve o século passado, com uma língua reduzida a cinzas, nada há aqui, como viu Blanchot, de violência. Densamente dialógica, pelo contrário, ela entrega-se, sem salvação possível, ao outro. E este é, possivelmente, um dos movimentos singulares desta poesia: cada vez mais em direcção a uma língua petrificada, que sofre todos os horrores, cada vez mais em direcção a esse “vazio saturado de vazio”; mas, ao mesmo tempo, arrancando “as sombras das palavras”, a partir desse lugar impossível da petrificação, em direcção a essa “entidade apostrofada”, “transformada em Tu pela nomeação”. Talvez seja por isso, por essa impossibilidade, que “todos os poetas são judeus”, como dizia Marina Tsvetaeva.