Em qualquer negociação, convém ter uma ideia clara do que pensa a contraparte e do porquê do pensamento. Quando se lida com grandes grupos sociais organizados, vulgo Estados, a história explica muita coisa. A República de Weimar mostrou quão perigosas são as derivas do parlamentarismo, capazes de destruir a democracia quando associadas a um recurso fácil ao estado de emergência. Mais do que na mecânica constitucional, Weimar falhou na gestão da hiperinflação gerada pela Grande Depressão. O oportunista com uma escova por bigode deixou uma marca forte na história alemã. Mas não se menospreze o peso da morte do marco às mãos da Grande Depressão.
Por estas razões, os alemães exigiram, aquando da negociação do Tratado de Maastricht e da criação do euro, a proibição do financiamento da dívida dos Estados por via da criação de moeda. O BCE tem uma só política, a monetária, e com o objectivo de manter a inflação dentro do limite de 2%. Poderemos discutir quão artificial é a separação entre política monetária e política económica, mas os alemães têm uma consciência muito clara do que delegaram no BCE em troca do abandono do marco.
A UE não se tornou um Estado federal e as suas competências são meramente delegadas pelos Estados-membros. O enterro da Constituição Europeia e a triste sucessão de referendos e contra-referendos mostrou quais são os limites políticos da construção europeia.
É extraordinariamente perigoso tentar, à margem dos tratados ou sequer da legislação derivada, obter resultados que não foram sufragados pelos métodos constitucionalmente aceites pelos Estados-membros: negociação pelos Governos e validação pelos Parlamentos nacionais. Fazê-lo pode dar argumentos a todas as frondas populistas – as de direita, com maior notoriedade no momento presente e até com assento no Conselho Europeu; mas também as de esquerda, que poderão não chegar ao Governo dos Estados, mas que poderão torná-los ingovernáveis.
O Tribunal Constitucional alemão (BVerfG) é o guardião de um sistema jurídico particularmente sofisticado e garante o respeito pelo Estado de direito, nas dimensões da protecção dos direitos fundamentais, da separação de poderes e do respeito pelo mandato parlamentar. Há muito (so lang…) que o BVerfG se reserva o direito de fiscalizar as decisões das instituições da União Europeia, atento à possibilidade de violação de princípios comuns às Constituições dos Estados-membros (ou seja, do conteúdo da lei fundamental de Bona). Esta possibilidade, nascida com a primeira decisão Solange, em 1974, era maior numa época em que não havia ainda Parlamento Europeu, ou enquanto este não teve poderes de co-decisão, em que o Tribunal de Justiça (da UE) não recorria à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e antes da aprovação da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais.
A razão de ser do escrutínio mantém-se, numa lógica de diálogo entre sistemas jurídicos. Esta terça-feira, o BVerfG considerou parco em fundamentação o esforço do TJUE para justificar a intervenção do BCE, em 2015, na compra de dívida pública. Deu três meses ao Governo federal e ao Bundesbank para obterem do BCE uma fundamentação adequada das compras, dentro dos limites da política monetária. Em Xelas consta que o escrito está já avançado. Espero que o bête papier esteja também fundamentado.
A pandemia reduziu o pensamento único a pensamento vazio. É tempo de acordar os neurónios e retirar a máscara que cobre o cérebro.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990