A História e a política


Confundir a participação política de um cidadão, ou simplesmente a sua ideologia, com o seu ofício é um vício que está incrustado na nossa sociedade.


Uma polémica que nasceu nas redes sociais – mais uma – depressa chegou ao Governo, que se sentiu na obrigação de se pronunciar.

Falo da crítica do deputado europeu Nuno Melo ao aparecimento do historiador Rui Tavares, fundador do partido Livre, numa aula de História e Geografia de Portugal para o 2.o ciclo.

Numa prosa inflamada, Nuno Melo afirmava: “Entre tantos, Rui Tavares foi escolhido para a telescola, destilando ideologia e transformando alunos em cobaias do socialismo. Nem disfarçam. Uma aviltante e ignóbil revolução cultural em marcha que pais sem recursos não podem evitar. Política travestida de educação. Miséria”.

Do que falava Nuno Melo, que foi rapidamente seguido por uma vereadora da Câmara Municipal de Lisboa, eleita pelo PSD, Sofia Vala Rocha? De um pequeno documentário, gravado e emitido pela RTP em 2018, dedicado à Exposição do Mundo Português, de 1940, que integra uma série de programas, intitulada Memória Fotográfica, e que foi incluído na aula daquele dia.

E que propaganda socialista ali era difundida, “política travestida de educação”?

Um texto objetivo, rigoroso, enumerando os objetivos da exposição de 1940, “uma imagem ideal do país que Salazar queria que a Europa visse”, não esquecendo até o facto de a esmagadora maioria da intelectualidade portuguesa se ter associado ao grandioso evento.

Quem lesse apenas o escrito de Nuno Melo e a sequela de Sofia Vala Rocha pensaria que Rui Tavares estava a dar aulas na telescola. Foi, aliás, o que a vereadora afirmou. Será também o que o próprio Nuno Melo terá pensado?

Por demasiadas vezes, deputados na Assembleia da República se têm pronunciado sobre casos que leram em títulos de jornais ou que, simplesmente, interpretaram descuidadamente. Lembro-me, por exemplo, da crítica a um programa de humor da RTP emitido em 2011, O Último a Sair, que um indignado deputado do CDS achava tratar-se de um reality show.

Valendo o que vale, o triste episódio revela a tendência constante da invasão pela baixa política de áreas de onde devia estar arredada. E também a queda para a censura e para a proibição dos extremos políticos, à esquerda e à direita.

Recordo, por exemplo, o incidente com o prof. Jaime Nogueira Pinto, impedido, em 2017, de participar numa conferência na Universidade Nova de Lisboa devido a ameaças proferidas pela associação de estudantes.

Confundir a participação política de um cidadão, ou simplesmente a sua ideologia, com o seu ofício – neste caso, historiador – é um vício que está incrustado na nossa sociedade e demasiadas vezes manifestado na luta política, ou simplesmente utilizado para denegrir cidadãos.

Não nutro por Rui Tavares qualquer simpatia pessoal ou ideológica, mas não posso ignorar o seu trabalho como historiador e, no caso concreto da sua participação na série documental Memória Fotográfica, dizer claramente que se trata de um excelente trabalho, da autoria de Jorge Nunes, quer do ponto de vista narrativo, quer pela excelente conceção gráfica e realização de Pedro Clérigo.

 

Jornalista