A normalidade esconde-nos muitas coisas. De algum modo, desterra-nos. É difícil ver a vida para além desses ritmos diários que exercem a sua chantagem sobre nós, que nos sequestram e cometem espantosas extorsões. Uma pandemia como a que está hoje no meio de nós pode ser vista como um tremendo estorvo, mas, a alguns pelo menos, oferece a oportunidade de nos evadirmos a esses ritmos, de formularmos uma percepção distanciada, crítica da realidade. Quando tantos não anseiam por mais do que o regresso da normalidade, há quem prefira proclamar-se sua viúva. “O que pedimos?/ Não que ele volte./ E sim que nos deixe tranquilas/ arrasadas em sua lembrança ansiolítica/ resistindo contra o seu destino”… Os versos são da poeta argentina Tamara Kamenszain, e apontam para outra coisa. Mas o rapto ao sentido original, as leituras a contrapelo, os abusos de interpretação fazem parte de uma liberdade que sabe aproveitar-se da confusão, e formular desejos de uma súbita decadência reanimadora. Até que a nova peste soçobre face ao poderio da nossa ciência, esses personagens com os quais nos vingamos dos imperativos que nos esmagam, “resumindo a epopeia da nossa existência a uma pantomima diligente” (Éric Vuillard), esses ímpetos de transgressão assumem um radiante apelo, e assim, ficaríamos bem servidos com o exemplo de Moravagine, criação do escritor francês de origem suíça Blaise Cendrars, um incurável louco, um prodígio de lucidez criminosa, que inspira no médico que o tem ao seu cuidado, uma lealdade extrema, ajudando-o a evadir-se e a montar uma campanha aventurosa contra o “sanatório internacional” no qual fomos todos internados. “Gostaria de ter aberto todas as gaiolas, todos os estábulos, todas as prisões, todos os hospícios de doidos, gostaria de ver as grandes feras em liberdade, de estudar o desenvolvimento de uma vida humana inesperada”, confessa-nos logo à partida o médico.
Não é que este vírus possa, por si só, provocar uma mudança que se aguente contra o regime que suspendeu. O mundo está na mesma. Apenas sob o efeito de uma paralisia, um veneno que o impede de se coçar, de reproduzir esses pequenos gestos em que nos vamos entregando aos destinos traçados por imperativos económicos que muitas vezes nos escapam. Como nota a escritora Rebecca Mead, num artigo recente publicado na The New Yorker, “agora, as cidades não lembram tanto cenários pós-apocalípticos como nos dão uma imagem do que seria o pós-capitalismo, como se a febre do consumo que acabou por caracterizar as metrópoles se tivesse, por fim, consumido a si mesma.”
Por sua vez, o escritor e cineasta alemão Alexander Kluge diz-nos que estamos a viver “um instante de enorme concentração histórica no qual há que reconhecer a catástrofe e, ao mesmo tempo, visualizar as saídas”. E adianta que apontar essas saídas é a “tarefa poética”: “uma saída de emergência não é uma porta com uma placa que indica ‘saída de emergência’. Para este pensador de 88 anos, o vírus veio dar-nos a hipótese de fazermos um “reset”, e nota que esta situação tem algo da “hora zero” em que se viu lançada a Alemanha em 1945, no final da Segunda Guerra.
Nos próximos meses, enquanto a incerteza continuar a armadilhar os seus cataclismas, impedindo que o modelo do capitalismo tardio que parecia ter, se não arrasado, pelo menos debilitado gravemente a razão política, será possível discutir se é desejável facilitar a vida a esse império, essa rede em que “uma malha se entrelaça a outra, pelo que o conjunto parece naturalíssimo. Mas ninguém sabe onde está a primeira malha, que rege o todo” (Robert Musil). No fundo, a política prosseguiu os seus meios através da economia, até perder para ela toda a sua autonomia, vendo-se abatida e confrontada com extractos bancários que, aos poucos, iam limitando as suas opções, deixando-a sem saída. A persuasão do império do dinheiro, como nos diz Claudio Magris, liga-se à sua abstracta rarefacção, “e a linguagem da economia tende, em geral, a tornar-se metáfora de fragilidade, falta, défice”. Assim, à medida que o tempo passa, a política consulta o seu saldo, a própria vida e a realidade contemporânea miram-se nesse distorcido reflexo, e convencem-se de que não passam de uma conta extinta.
É neste contexto que o que é tido como uma economia saudável pode ser encarado como uma espécie de sanatório com uma organização capaz de triturar as nossas convicções e convencer-nos de que seríamos loucos em querer abandoná-lo e aos seus cuidados. Às vezes, só uma doença pode desencadear essa reacção imunológica necessária a que nos libertemos de uma influência que subjugou inteiramente a nossa vontade. Como nos diz o narrador do romance de Cendrars, “as doenças existem. Não as fazemos nem as desfazemos a nosso bel-prazer. Não somos senhores delas. Elas é que nos fazem, que nos modelam. Talvez nos tenham criado. São próprias desse estado de actividades a que se chama a vida. Constituem talvez a sua principal actividade. Representam uma das numerosas manifestações da matéria universal. São talvez a principal manifestação dessa matéria, cujos fenómenos de relação e de analogia talvez nunca nos encontremos em condições de estudar. São um estado de saúde transitório, intermediário, futuro. São talvez a própria saúde.”
Pode extrair-se muito de um paralelo entre a denúncia que faz Cendrars da psiquiatria e da sua influência no século passado com o quase demencial fervor em viver uma vida saudável nos nossos dias. Esta emergência sanitária eleva isso ao paroxismo nas sociedades do chamado primeiro mundo, com o seu fervor higienizante, a sua forma de sitiar as cidades, forçar todos a uma prisão domiciliária, alarmados pelas notícias de uma catástrofe invisível, dopados pelo entretenimento, empurrados de vez para um recreio virtual, uma digitalização de todos os ímpetos, produzindo um efeito de amolecimento no plano real, uma forma de sonho vívido e inofensivo. Com a sua apropriação da mitologia grega, a psiquiatria assentou firmemente a sua arrogante ficção sobre noções herdadas de forma quase inconsciente, e foi assumindo cada vez maiores poderes de coacção, conduzindo ao divã toda a sociedade, como agora as medidas de contenção de um vírus, que está já por toda a parte, conduz ao isolamento e ao sofá.
“– Profilaxia! Profilaxia!… – dizem eles. E, para salvarem a pele, arruínam o futuro da espécie.
Em nome de que lei, de que moral, de que sociedade se dão eles ao luxo de continuar a causar estrago? Internam, sequestram, isolam os indivíduos mais representativos. Mutilam os genes fisiológicos, portadores, anunciadores da saúde de amanhã.”
“Tudo se baseia numa tabela estabelecida segundo estatísticas irrevogáveis (…) recorre-se à prostração nervosa e à exaltação da sensibilidade”, formando esta cultura de vigilância permanente, a qual, de resto, a nós, portugueses, como vincou o poeta Nunes da Rocha, numa publicação nas redes sociais, traz à memória a sensação de certas “forças adormecidas do Estado Mofo”, que assim despertam e “tomam o gosto” a esta revigorada cultura de autoridade que se exerce concatenando os esforços de um povo que não se livrou de todo do signo da concupiscência, e que continuou a dar largas ao seu ímpeto nivelador por meio de estratégias amesquinhantes, de uma mecânica de intrigas e de um ambiente de sufocante hipocrisia. “Convém lembrar que sempre os conhecemos”, nota Nunes da Rocha: “a bufaria (eterna delação), a cena policiária (não toda, vá) na abordagem ao cagaço popular, os ‘vigilantes’ de toda a espécie da saúde & bom comportamento social. Em suma, o nojo.”
Também Manuel Loff, historiador e professor na Universidade do Porto, numa entrevista ao Público, explicava a forma como os portugueses se adiantaram até às precauções do Estado, razão porque fomos alvo de comendas pelo nosso bom comportamento, pela disciplina no cumprimento do isolamento social. Por cautela, Loff preferiu não ir tão longe ao ponto de ver na adesão ao isolamento social “um resquício da ditadura”. Mas não deixou, assim mesmo, de apontar o elefante branco. “Nós somos, dizem-nos todos os estudos da OCDE, uma das sociedades mais deprimidas, mais infelizes e mais tristes da Europa. Somos a sociedade mais desigual da Europa Ocidental, das que consomem mais antidepressivos, e das que têm uma perspectiva mais pessimista e se sentem menos felizes.”
É um cenário que já de si convida o medo a tomar a forma de um predador. Segundo Loff, “numa sociedade pouco feliz, o medo avança”. “As pessoas cumprem aquilo que lhes pedem”. Mas é, então, que entra em cena essa brigada de subcomissários, os “vigilantes”, os que implantam esse modelo de opressão difusa. Como refere o historiador, “alguns dos nossos concidadãos – e, isso sim, é uma prática que era típica da ditadura – transformaram-se em ‘delatores’”. Emerge, assim, um retrato bastante desolador da nossa comunidade que se tece como uma teia de suspeitas. Como sublinha Loff, “uma sociedade cuja polícia diz que diariamente recebe centenas de chamadas de gente a denunciar pessoas que se passeiam na rua é também uma sociedade em que uma parte das pessoas virou delatora”.
Falando de relações de vizinhança, pondo água na fervura, e voltando à ideia de Cendrars de que as epidemias podem ser anunciadoras da saúde de amanhã, Alexander Kluge, lembra que “os vírus são nossos vizinhos na evolução, e são mais velhos que nós, têm 3,5 mil milhões de anos. Há quem diga que os nossos antecessores são um dos formidáveis acasos produzidos por essas simples sequências de ácido ribonucleico. No nosso genoma, mais de metade são vírus patrióticos que se batem oniricamente nas nossas células contra doenças hoje extintas e perigos desde há 45 milhões de anos, combatem outros vírus arcaicos, constituindo a base da nossa imunidade.” Kluge acrescenta ainda que “o antídoto poderia já estar em nós e, ao mesmo tempo, estes vírus são como extraterrestres neste nosso planeta”.
Mas voltando à bufaria, é sempre complicado perceber que mecanismos são tão úteis, em períodos conturbados como este, a recrutar fiéis para a religião do medo, para a sua liturgia medonha, mas Cendrars dá-nos uma pista, falando nessas personagens que “por sofrerem da mania da perseguição, facilmente desempenham o papel de vítimas”. Porque o medo vira sempre o bico ao prego. E, por vezes, é o alarme que gera a presa, que com o seu nervosismo descarrega no ar essa concentração de hormonas medrosas, e é isso que espanta e finalmente encandeia o predador. Os bufos são esses seres que, incapazes, por mais que se esforcem, de disfarçar o cheiro a medo, se precipitam, antecipam os piores cenários, geram as suas guerras de prevenção. Estão sujeitos à influência de um desolador anseio de preservação, e parecem recolher um reflexo que confirma as suas paranoias nestas sociedades gestoras de crises, produtoras de catástrofes artificiais, para manter sob rédea curta a população. Isso explica o sacrifício do próprio planeta, o prazer demencial de umas poucas gerações em dar cabo do futuro, essa ilusão de que se poderia virar costas à natureza acidental, imprevisível da vida, e como isso levou a um progressivo isolamento, como sucessivos executivos e administrações, políticos, industriais e investidores “procederam à construção de paraísos ao contrário; procederam à construção de casas fechadas, cuja soleira só se atravessa à força de notas de banco”… E Blaise Cendrars diz-nos que “o sésamo delas é o ouro”.
Talvez não sejamos predadores. Kluge garante que não. Mas pode ser que nos tenhamos especializado em fazer-nos de vítimas, arranjando justificações para os nossos piores impulsos. Talvez isso seja o que está na base deste “mecanismo das causas mórbidas” que nos leva a encarar o outro como a ameaça, a infecção através da qual o inferno elabora o seu contágio. Tudo o que é preciso é encontrar um cadáver. “Formam-se sempre grupos em redor de um cadáver”, diz-nos o autor e editor italiano Roberto Calasso. “Quando não existe cadáver, esse espaço vazio evoca os muitos cadáveres que aí estiveram e os muitos que ainda hão-de estar. É o último rito que mantém coesa a sociedade civil. O grupo é um ‘cristal de massa’. Aqueles que o compõem obedecem a uma vocação, revelando de súbito a sua pertença a uma vasta seita: seguidores devotos de um poder oficialmente inócuo, essencialmente persecutório: a Opinião. Empurram-se e acotovelam-se sem disso se aperceberem; todos convergem para o mesmo ponto, que é o círculo vazio no centro do grupo. Aí, como fez notar René Girard, puderam ver certa vez o corpo mutilado da vítima do linchamento original.”
Não deve espantar-nos que a defesa da saúde, a tentativa de abolir a morte, de afastar todos os seus sinais, exilar essa perspectiva incómoda, se tenha transformado no grande desígnio das sociedades modernas. Hoje, todos parecem nutrir pela ideia e até pela aproximação da morte a sensação de uma terrível injúria. É como se fosse a pior das ofensas. E sobretudo essa morte que pertence à doença é vista como uma ofensa de todo o tamanho. “Antigamente sabia-se (ou talvez se pressentisse) que se trazia a morte dentro de si, como o fruto o caroço”, notou Rilke. Agora, parece que aos médicos cumpre a traição suprema de informar os seus pacientes imortais de que a ciência lhes falhou, pois não sabe mais o que fazer para prolongar-lhes a vida. Há até já quem tenha o esquema natural em tão baixa consideração que conquiste os meios e invista mundos e fundos para se eternizar, levando ao limite esta espécie de licença que nos foi concedida como a hóspedes, os quais, tendo-se apegado à Pensão, se propõem comprá-la, e mudar as regras da casa. Assim, Cendrars diz-nos que “a saúde, reconhecida como um bem público, não passa do triste simulacro de uma doença fora de moda, ridícula, imóvel, qualquer coisa de solenemente envelhecida, que vagamente se conserva de pé entre os braços dos aduladores e que, de entre os dentes falsos, ainda consegue sorrir para eles”. Essa ideia da saúde, vinca o poeta, enraizou-se como algo de absolutamente maligno mas a que nos habituámos, e é, hoje, um “lugar comum, cliché fisiológico, qualquer coisa morta. E talvez a própria morte.”