Covid-19: a pandemia da pobreza e da desigualdade


Se estávamos em guerra contra um inimigo desconhecido, é justo dizer que vencemos a primeira batalha. Outras mais estão à nossa frente. Na saúde pública, na economia e na coesão social.


Sucesso e pandemia são palavras que não casam. Pela simples razão de que não é possível falar de sucesso quando há perda de vidas humanas. E, em Portugal, já foram mais de um milhar. O número continuará a crescer nos próximos tempos, até que a covid-19 seja erradicada.

Tirar o sucesso da equação mostra realismo, respeito e solidariedade para com aqueles que sofrem – e não são poucos.

Porém, Portugal ficou muito aquém dos piores cenários projetados. Isso é, qualquer que seja a perspetiva, uma vitória para o país.

Ainda que os números não tenham sido tratados com rigor pelas autoridades, podemos dizer com toda a certeza que superámos o primeiro embate da doença.

Muitos perguntam-se como é que Portugal, um pobre país do sul da Europa, foi capaz de o fazer, enquanto outros mais prósperos se debateram com números astronómicos de infetados e mortos.

Diria que há quatro elementos críticos para os nossos resultados terem sido suavizados.

Em primeiro lugar, o sentido de responsabilidade dos portugueses. Com a tragédia de Itália e Espanha a entrar porta dentro, os portugueses adotaram medidas de confinamento e proteção individual muito antes da declaração do estado de emergência. Estes dias que se ganharam foram fundamentais para conter a infeção. Em certa medida, nos primeiros tempos, foi o Governo que andou a reboque das medidas dos portugueses, e não o inverso.

Em segundo lugar, a resiliência do nosso SNS. Mesmo depauperado por anos sucessivos de desinvestimento, mesmo esticado ao limite das suas forças, o SNS deu uma resposta de verdadeiro sacrifício patriótico.

Em terceiro lugar, o papel das autarquias. As câmaras revelaram toda a centralidade do poder de proximidade: levando ao limite as suas competências legais, foram os presidentes de câmara a fazer chegar ao país os primeiros carregamentos de equipamentos de proteção individual, foram as câmaras a tomar as primeiras medidas restritivas em espaço público e são as câmaras as primeiras a sair com o apoio para os mais necessitados perante a crise social em formação.

Em quarto lugar, a ação ponderada mas firme do primeiro-ministro e de alguns dos membros do Executivo, apoiados num consenso político sem precedentes em tempos recentes de emergência. Diria que a autoridade do Governo só foi beliscada pela criação de exceções legais que criaram nos portugueses o sentimento de que há dois países: um para aqueles a quem se aplica a lei e outro regido por exceções.

Se estávamos em guerra contra um inimigo desconhecido, é justo dizer que vencemos a primeira batalha.

Outras mais estão à nossa frente. Desde logo, no domínio da saúde pública. Exemplos históricos sugerem que a segunda vaga das pandemias tende a ser mais violenta do que o primeiro impacto – o exemplo da gripe espanhola é o mais notório. Mas também no domínio da economia e da coesão social. As cinco principais economias europeias têm mais de 30 milhões de trabalhadores em layoff. Nos EUA, são 26 milhões. Os números do desemprego são galopantes. A atividade das empresas recuou para mínimos de 2008 (explosão da crise financeira) e pelo menos 20% do comércio mundial vai evaporar-se. Só quem tenha sobrevivido à Grande Depressão pode dizer que já passou por coisa parecida.

Estes acontecimentos, estas tensões têm potencial para definir não apenas os próximos anos, mas toda uma década à nossa frente.

Esse impacto dependerá da forma como fizermos a transição ordenada para o desconfinamento.

À medida que levantamos as restrições, emergirá uma nova realidade: os que têm e os que não têm emprego; os negócios que podem abrir e os que são obrigados a manter a porta fechada; os cidadãos que podem sair de casa e os que são obrigados a manter-se em isolamento; os profissionais que podem abraçar o teletrabalho e os que não têm outra escolha que não seja a de estarem na rua, na linha da frente, dia após dia.

A covid-19 deixou-nos como legado um rasto de destruição. Uma pobreza e desigualdade pandémica.

Mais uma vez, o poder local será decisivo para o alívio das tensões atrás referidas.

Com a tantas vezes prometida e eternamente adiada reforma para a descentralização em vigor, o apoio e grau de proteção aos cidadãos seria mais forte e eficaz. Porque o legislador não fez o que devia quando o devia ter feito, temos de trabalhar com o que temos.

E, em Cascais, o que temos é uma visão estratégica muito clara: continuar a conter a pandemia (até ao “R” mais insignificante possível) e combater intransigentemente pela dignidade de todos no meio da dificuldade.

Lançámos nos últimos dias mais três medidas que complementam o quadro de proteção, confiança, equidade e liberdade que nos guia – e do qual dei aqui nota na última semana.

Perante a alteração de circunstâncias definida pelo Governo – o uso de máscara obrigatória em transportes públicos –, o nosso entendimento é que não podemos exigir isso aos cidadãos sem que lhes seja criada uma hipótese de aquisição de máscaras a preço muito baixo. Por isso, desde segunda-feira, o nosso programa de Máscaras Acessíveis entra numa nova fase que passa por: (1) distribuição gratuita nos transportes públicos; (2) gratuitidade para maiores de 65 e pessoas em fragilidade social (desempregados) mediante contacto prévio com os serviços municipais; (3) instalação de dispensadores automáticos por todo o concelho com (4) máscaras a um preço unitário de 0.25 euros.

Também esta semana, lançamos a caixa solidária virtual. Inspirada na ideia de um munícipe de Cascais, o Nuno Botelho, autor das caixas solidárias que estão hoje por todo o país, Cascais lançou uma plataforma digital que concentra os donativos da sociedade civil. O compromisso é que a autarquia dobre todos os donativos recebidos. A App 1=2 está a funcionar em pleno e apelo aos leitores do i que possam também contribuir. Garantir a dignidade na dificuldade é um compromisso férreo da nossa parte.

Por último, os estudantes de Cascais terão um complemento de ensino à distância com um canal de telescola no Instagram, com conteúdos desenhados localmente e destinado a todos e, muito em particular, aos alunos com necessidades especiais.

O Papa Francisco fez ecoar um sentimento de unidade global quando disse “estamos todos no mesmo barco”.

Agora que a pandemia parece estar a dar uma (falsa) sensação de trégua, é essencial que continuemos todos no mesmo barco.

É isso que definirá a nossa capacidade de vencer, ou não, o coronavírus e as múltiplas crises que ele nos lançou ao caminho.

Presidente da Câmara Municipal de Cascais

Escreve à quarta-feira