Cravo (Publicações D. Quixote)
É no Portuguesíssimo nome Marias (p.32) que lemos, «Mas éramos mulheres. Tão pouco a perder. Tão calhadas para essa festa que é a memória dos lugares humildes da casa, de todas as casas, serras e cidades – a cozinha, a cama dos miúdos.»
Esta é uma frase que ferra, mas este é um cravo que crava.
Na verdade, a mulher reproduz-se nos filhos, mas não se reproduz na liberdade.
Agora mesmo escrevo na mesa da cozinha junto ao armário azul merceeiro refugiada da liberdade e do silêncio que os meus filhos ferozmente assaltam.
Também me assaltou agora mesmo a célebre frase de Simone Beavoir “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Eu nasci mulher, tornei-me mãe, fiz-me palavra.
É muito mais difícil para uma mulher mãe fazer-se palavra, para uma mulher mãe fazer-se tinta, para uma mulher mãe fazer-se múltipla. Na verdade, acredito que como as ancas, as palavras das mães sejam mais largas, mais elásticas e temos muito mais a perder sim. Temos o apego ao verbo e aos filhos. Temos os filhos sempre pendurados em nós. Às nossas costas, aos nossos ouvidos, ao nosso coração.
A cozinha e a cama são ainda hoje os destinos onde independentemente de um emprego somos calhadas, mesmo que completas e felizes na maternidade.
Hilda Hilst que achava lindas as crianças, dizia que também a apavoravam. Que lhe pareciam crionças. A mim também me parecem essas crionças às vezes. Um misto dos seres que mais amo no mundo, outras, onças assustadoras que me desviam e interrompem a toda a hora e momento as leituras e a escrita. Pela maternidade fiquei em dívida com muitos escritores, mas ganhei resmas de doçura e é também por isso que as mulheres têm tão mais a perder. Tão mais a perder.
Neste Cravo, os homens são quase sempre os outros.
É o braço de ferro entre o feminino singular e o masculino plural como se pode ler (p.32) «(…)vi-os matar só porque tem de ser e assim ser morto – porque sim. (…) Vi-os levar à força por sua mão todos os filhos mancebos e vendar para sempre os olhos de todos os meninos.» Este masculino no plural é áspero, temeroso, mas o singular feminino de Maria Velho da Costa é ereto, dorido e dotado de voz e de força como «um punho para saudar a rua.» (p.32)
É um Cravo violento sim, mas é um Cravo transbordante de amor numa altura em que o futuro parecia vedado. Tão vedado ou mais que agora o nosso com esta pandemia infernal.
Mais do que nunca o futuro nos parece vedado. Parecem-nos vedados os abraços, as avenidas, o ar, o sol, a cidadania. Hoje a cidadania de todos é a solidão entre quatro paredes.
Este é um livro escrito antes do 25 de Abril de 74 por uma mulher nascida uma década depois do 25 de Abril de 74.
Este Cravo é um país escrito, livro-país ávido de liberdade e de salvação como todos nós agora.
A poesia, o teatro, a pintura, o cinema são antídotos milagrosos para o desespero, para a salvação da nossa cidadania.
Voo de amiga pelos maiores céus, Incitação lírica ao crime longínquo ou Uma carta de amor insuportável e Cantigas de amigos amados são textos de uma sensibilidade galopante, confessional, despida de artifício.
Nas cantigas de amigos amados lemos declarações de amizade tão genuínas dedicadas a amigos que nós leitores desconhecemos (talvez com a exceção de Sophia), mas que os fazemos nossos à luz da sua ternura.
A João escreve «Meu chapéu, corredor. Não é que tenhamos conversado muito, são só vinte anos quase.» (p.150) Ou a Isabel «Menina flores, que fez da sua casinha de cristal deitada nos estames de uma violeta? Pensaria acaso que outra cintura viria ondular sobre o tripé e vir falar em nome de seu agudo nome.» (p.149) Ou a Graça «Amiga, afastas-te para o grande país dos calados, ou afias a voz e antenas nessa opacidade, para que alguma coisa morra que não tu?» (p.148)
Neste tempo cinzento os dias poderão parecer todos iguais, mas os amigos são todos diferentes. Escrever a um amigo é desenhar a amizade, cravá-la, bruni-la.
Em vez de acumularmos ansiedades, noites sem dormir, mil agonias, tentemos somar poemas, fábulas, histórias, cravos de todas as cores como este, capazes de nos erguer do escuro.
Não é só o grito, a revolução, a força, a luta que se impõe neste livro, mas sim a liberdade. A liberdade é o desejo maior de qualquer leitor, esse soldado invisível da paz sedento de futuro em tempos de guerra.
O corona não sabe mesmo no que se mete quando brinca com as palavras ardorosamente.