Maria Velho da Costa. «Ninguém sabe no que se mete quando brinca com as palavras ardorosamente»

Maria Velho da Costa. «Ninguém sabe no que se mete quando brinca com as palavras ardorosamente»


O Cravo. Vinte e três textos reunidos provenientes de vários arquivos, revistas e congressos. Vinte e três pétalas em sangue que derramam a liberdade, a linguagem, “a cidadania do poeta”, o papel da mulher. Não só o papel, mas o corpo, a alma, a dor, a sua imposição numa dinastia viril implacável.


Cravo (Publicações D. Quixote)

É no Portuguesíssimo nome Marias (p.32) que lemos, «Mas éramos mulheres. Tão pouco a perder. Tão calhadas para essa festa que é a memória dos lugares humildes da casa, de todas as casas, serras e cidades – a cozinha, a cama dos miúdos.»

Esta é uma frase que ferra, mas este é um cravo que crava.

Na verdade, a mulher reproduz-se nos filhos, mas não se reproduz na liberdade.

Agora mesmo escrevo na mesa da cozinha junto ao armário azul merceeiro refugiada da liberdade e do silêncio que os meus filhos ferozmente assaltam.

Também me assaltou agora mesmo a célebre frase de Simone Beavoir “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Eu nasci mulher, tornei-me mãe, fiz-me palavra.

É muito mais difícil para uma mulher mãe fazer-se palavra, para uma mulher mãe fazer-se tinta, para uma mulher mãe fazer-se múltipla. Na verdade, acredito que como as ancas, as palavras das mães sejam mais largas, mais elásticas e temos muito mais a perder sim. Temos o apego ao verbo e aos filhos. Temos os filhos sempre pendurados em nós. Às nossas costas, aos nossos ouvidos, ao nosso coração.

A cozinha e a cama são ainda hoje os destinos onde independentemente de um emprego somos calhadas, mesmo que completas e felizes na maternidade.

Hilda Hilst que achava lindas as crianças, dizia que também a apavoravam. Que lhe pareciam crionças. A mim também me parecem essas crionças às vezes. Um misto dos seres que mais amo no mundo, outras, onças assustadoras que me desviam e interrompem a toda a hora e momento as leituras e a escrita. Pela maternidade fiquei em dívida com muitos escritores, mas ganhei resmas de doçura e é também por isso que as mulheres têm tão mais a perder. Tão mais a perder.  

Neste Cravo, os homens são quase sempre os outros.

É o braço de ferro entre o feminino singular e o masculino plural como se pode ler (p.32) «(…)vi-os matar só porque tem de ser e assim ser morto – porque sim. (…) Vi-os levar à força por sua mão todos os filhos mancebos e vendar para sempre os olhos de todos os meninos.» Este masculino no plural é áspero, temeroso, mas o singular feminino de Maria Velho da Costa é ereto, dorido e dotado de voz e de força como «um punho para saudar a rua.» (p.32)

É um Cravo violento sim, mas é um Cravo transbordante de amor numa altura em que o futuro parecia vedado. Tão vedado ou mais que agora o nosso com esta pandemia infernal.

Mais do que nunca o futuro nos parece vedado. Parecem-nos vedados os abraços, as avenidas, o ar, o sol, a cidadania. Hoje a cidadania de todos é a solidão entre quatro paredes.

Este é um livro escrito antes do 25 de Abril de 74 por uma mulher nascida uma década depois do 25 de Abril de 74.

Este Cravo é um país escrito, livro-país ávido de liberdade e de salvação como todos nós agora.

A poesia, o teatro, a pintura, o cinema são antídotos milagrosos para o desespero, para a salvação da nossa cidadania.

Voo de amiga pelos maiores céus, Incitação lírica ao crime longínquo ou Uma carta de amor insuportável e Cantigas de amigos amados são textos de uma sensibilidade galopante, confessional, despida de artifício.

Nas cantigas de amigos amados lemos declarações de amizade tão genuínas dedicadas a amigos que nós leitores desconhecemos (talvez com a exceção de Sophia), mas que os fazemos nossos à luz da sua ternura.

A João escreve «Meu chapéu, corredor. Não é que tenhamos conversado muito, são só vinte anos quase.» (p.150) Ou a Isabel «Menina flores, que fez da sua casinha de cristal deitada nos estames de uma violeta? Pensaria acaso que outra cintura viria ondular sobre o tripé e vir falar em nome de seu agudo nome.» (p.149) Ou a Graça «Amiga, afastas-te para o grande país dos calados, ou afias a voz e antenas nessa opacidade, para que alguma coisa morra que não tu?» (p.148)

Neste tempo cinzento os dias poderão parecer todos iguais, mas os amigos são todos diferentes. Escrever a um amigo é desenhar a amizade, cravá-la, bruni-la.

Em vez de acumularmos ansiedades, noites sem dormir, mil agonias, tentemos somar poemas, fábulas, histórias, cravos de todas as cores como este, capazes de nos erguer do escuro.

Não é só o grito, a revolução, a força, a luta que se impõe neste livro, mas sim a liberdade. A liberdade é o desejo maior de qualquer leitor, esse soldado invisível da paz sedento de futuro em tempos de guerra.

O corona não sabe mesmo no que se mete quando brinca com as palavras ardorosamente.