1. Observamos, já, neste espaço de cidadania, como em um número crescente de países, da Europa à América Latina, passando pela Ásia (Hungria, Polónia, Turquia, Filipinas, Venezuela, EUA, Brasil…), se tem feito um caminho, consoante os casos, rumo a potenciais/com afloramentos de democracias iliberais, ou democraturas ou ditaduras eleitorais, consoante as fórmulas ou nomenclaturas preferidas por diferentes cientistas políticos para caracterizar uma realidade em que os cidadãos ainda vão às urnas, mas em que i) o poder judicial tende a ser capturado pelo partido de governo, ii) os media independentes são silenciados, iii) os direitos de minorias étnicas, religiosas ou sexuais são obliterados; iv) as instituições, dos institutos de estatística aos serviços secretos, sem independência ou autonomia. Desaparecidos os árbitros, o sistema de checks and balances (freios e contrapesos) fica em crise, a ditadura não surge do dia para a noite; mas avança, passo a passo, como um tumor silencioso, esta democracia iliberal – as pessoas votam, mas fazem-no, pois, perante um panorama, acesso a informação ou conhecimento, muito condicionados. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, no essencial, expuseram, com vasto repertório de exemplos, este contexto, em Como morrem as democracias.
2. Agora, completando esta leitura, Yascha Mounk, em Povo vs Democracia, diz-nos que, efetivamente, democracia e liberalismo estão a afastar-se, sendo que não apenas temos democracias não liberais, mas liberalismo sem democracia. Esclareçamos, pois, este ponto. Um sistema em que o povo é quem decide assegura que os mais poderosos não espezinharão os direitos dos mais desfavorecidos. Do mesmo modo, um sistema em que os direitos das minorias estão protegidos e a imprensa pode criticar o governo garante que este pode ser mudado pelo povo através de eleições livres e justas.
O que é um liberalismo não democrático? É aquele sistema em que todas as regras e pormenores processuais são seguidos cuidadosamente, os direitos individuais são respeitados, mas os eleitores percebem que a sua influência sobre as decisões políticas é muito escassa.
Na Hungria, a vontade popular afastou as instituições independentes e os direitos das minorias, colocando em causa o Estado de Direito (democracia iliberal); na Grécia, se remontarmos a 2015, vemos que o resultado de um referendo popular, foi afastado, em parte, pela força dos mercados e pelas convicções de elites tecnocráticas (liberalismo não democrático). Na Prússia do séc.XIX, o monarca absoluto podia respeitar direitos dos súbditos e permitir alguma liberdade de expressão, sem que houvesse democracia; e na Atenas clássica, a Assembleia popular executava filósofos críticos, exilava estadistas impopulares, censurava discursos políticos ou partituras musicais. Sintetizando o momento político que vimos vivendo, escreve Yascha Mounk: “os eleitores estão a ficar impacientes com instituições independentes e cada vez menos dispostos a tolerar os direitos de minorias religiosas e étnicas. Por outro lado, as elites apoderaram-se do sistema político e tornaram-no cada vez mais insensível: os poderosos têm cada vez menos vontade de ceder aos pontos de vista do povo. Por isso, liberalismo e democracia, os dois elementos nucleares do nosso sistema político, começam a entrar em conflito”.
3. Este Professor de Relações Internacionais na Universidade de John Hopkins coloca, ainda, esta hipótese-alerta: a democracia pode ter dependido de condições históricas que hoje ou já não existem, ou estão em causa. Fundamentalmente, a democracia esteve associada a um forte crescimento económico (foram os maus resultados deste que permitiram, por exemplo, a ascensão populista na Hungria); a uma homogeneidade das populações (as fortes migrações contemporâneas têm colocado certos sectores de populações nacionais ansiosas e vinculadas a extremos políticos, em países tão diversos como Alemanha, França ou Suécia); e a uma comunicação de massas que permitia marginalizar pontos de vista extremos (esta comunicação de massas, até devido aos custos de ter um jornal, uma televisão ou uma rádio, era pertença das elites, mas a explosão das redes sociais acabou com tal monopólio e permite a difusão do conteúdo mais agressivo, sem filtros). Ademais, a democracia pode ter correspondido a um período em que o “progresso” geracional, no que às condições económico-financeiras diz respeito, se fazia sentir – cada geração melhorava o seu nível de vida face à anterior (pode não bastar, pois, que um país ofereça uma vida decente a um seu cidadão e que necessário seja, em termos de densidade democrática, que a vida deste seja melhor, na tradução económico-financeira, que a dos seus progenitores). Mais do que 9 em cada 10 norte-americanos, nascidos em 1940, ao chegarem aos 30 anos, viviam melhor do que os seus pais; quanto aos que nasceram em 1980, apenas 1 em 2 alcançam tal perspetiva de vida. A geração de 1980 sofreu perdas salariais reais em países como Itália, França, Alemanha, Espanha ou Canadá. E a própria esperança média de vida já teve avanços mais espetaculares – tendo, inclusive, recuado, por exemplo, entre os norte-americanos brancos, um fenómeno que sucede pela primeira vez na história (Mounk, 2019, pp.158-159).