Numa época e num momento em específico tão conturbados, em que a realidade dá voltas, rindo-se, em tom de chacota, em redor das noções em que acreditamos, de tudo aquilo que nos serve de âncora, as nossas crenças nunca se pareceram tanto com voláteis superstições a que nos agarramos como quem faz os possíveis por firmar uma posição num terreno movediço. Seria de esperar que as ficções arquitectadas pelos mais sediciosos espíritos deste tempo se instruíssem, com um ânimo desafiador, raiando a cólera, num balanço entre a intuição e a exploração dessas aberturas científicas sobre o mundo moderno, e os saltos que estas admitem no mais vasto campo metafísico. Mas têm sido raros os autores capazes de propor sagazes leituras das folhas de chá sobre a sociedade com que, hoje, nos confrontamos. Se se pode admitir que, tal como a natureza, a ficção detesta o vazio, Alex Garland é hoje um dos criadores que mais se distinguem pela forma como se lança com um inabalável fervor no terreno da mais exigente fantasia especulativa. Muita da melhor ficção que, hoje, e com as séries, se transferiu também para o universo televisivo, continua a focar de forma resoluta aspectos da nossa vida íntima, desenhando espirais e paralelas que nos dão margem de recuo, essa distância que permite que reflictamos sobre a forma como esta tem sido abalada pelas transformações de uma era que comprime o que antes acontecia em séculos em meses ou até semanas. Se o tempo nunca foi tão relativo, Garland beneficia de uma falha fabulosa que faz dele um intrépido compositor em grande escala. Há uma qualidade autista nas suas explorações, uma firmeza invulgar que, à primeira vista, simula uma forma de frieza. E isso liga-se à capacidade de se livrar do que, dizendo respeito ao que é humano, chega a sufocar por se mostrar demasiado humano. Num certo sentido, Garland livra-se dessas formas de realismo limitado e sequencial para se manter vigilante num plano mais abstracto, ali onde as nossas concepções se tornam mais desgrenhadas, desafiadoras, cobertas de suor. Na sua transição do romance para a escrita para o cinema, e depois para a realização, este autor não deixou pelo caminho a contemplação dos aspectos mais desmesurados e que provocam tonturas na nossa consciência. Desde um romance como “A Praia” (caricaturado de forma bastante tosca na adaptação ao cinema, com realização de Danny Boyle, e Leonardo DiCaprio no papel de protagonista), que constituiu um marco para a geração X, até filmes como “Ex Machina” e “Annihilation”, em que a ficção científica, mais do que um género, se torna um processo, um plano de investigação, em que Garland inquire a natureza humana e o potencial de auto-destruição que parece ter-lhe sido adscrito no código, como se Deus tivesse deixado um prazo na sua criação, uma espécie de bomba-relógio, que explodirá antes que o Homem assuma inteiramente o controlo do seu destino.
Nesta audaciosa transição, o romancista britânico não traiu o fôlego romanesco, nem abdicou de uma séria dose de risco, de tal modo que, aquilo de que genericamente tem sido acusado nas suas audaciosas explorações cinematográficas, é de provocar vertigens à audiência, que se sente a embarcar numa nave lançada em órbita para fins não especificados. Entre ramificações complexas, sem trair as teorias mais inquietantes no que respeita às grandes hipóteses teóricas, atirando-se para o outro lado do espelho, no campo da inteligência artificial, e apertando a bochecha à utopia, fazendo-a corar, Garland chega ao formato da série televisiva como um intelecto projectado através de um simulador que formulasse um híbrido dos génios visionários de Stanley Kubrick e Philip K. Dick. E agora que os oito episódios da sua estreia na ficção televisiva foram já exibidos, os dados continuam a rolar, e as reacções dividem-se entre o assombro e a frustração. Se a série DEVS, originalmente exibida no canal Hulu (e que chegou a Portugal através da HBO), deixou muitas pessoas deslumbradas, como se infectadas por um vírus que lançasse a mente em indagações filosóficas, sideradas com as possibilidades de desdobramento ficcional conferidas pela computação quântica na trama, para muitas outras, esta abertura provocou náusea e enjoos, como quem é despertado bruscamente de um sonho vívido, mas banal, para ser lançado numa versão da realidade que exige muitíssimo das nossas faculdades analíticas. Estas pessoas, as que tendem a consolar-se com séries como ferramentas de escapismo, essas doses semanais de consolo e delírio, terão ficado demasiado indispostas para acompanhar os desenvolvimentos de uma ficção que pede menos a postura relaxada no sofá do que um espectador tenso, que se sente à secretária, munido de um lápis para fazer sublinhados e conjecturas à margem de um romance que, se maravilha, também oferece algumas dores de cabeça.
Ao exigir tanto do seu espectador como do leitor dos seus romances, Garland não parece importar-se com a ideia de que, logo no primeiro episódio, DEVS procede a uma triagem severa da sua audiência, o que poderá levar alguns a forçar-se a vê-la submetidos a essa irritação, como quem fica no fundo da sala, dirigindo a sua atenção para eventuais problemas técnicos. E não deixará de ser uma forma de emancipação para esse espectador presumido que se sente na obrigação de transmitir aos criadores de produções televisivas a sua lista de requisitos para o que deve ser uma boa obra de entretenimento. Vendo-se contrariados, irão investir-se de um ânimo próprio dos ateus fanáticos, fazendo buracos nesta criação, e, paradoxalmente, ajudando-a a respirar melhor. Assim, estes cavaleiros da ordem da desmistificação, poderão explorar desdobramentos científicos sobre o qual esta ficção não chega a deter-se, dando-lhe uma outra vida.
Garland parece ser, de facto, desses criadores que vêem o entretenimento como um efeito secundário produzido por uma obra desafiadora para o nosso intelecto. Tal como acontecia em “Ex Machina”, aqui ele foca-se nos avanços que estão a ser feitos por uma empresa tecnológica que ameaça pôr o dedo na ferida do nosso horizonte, e provocar com isso um tremendo efeito de expansão. Esta empresa, Amaya, é também liderada por uma figura excêntrica, neste caso, um homem devastado por uma perda que o leva a nutrir um desdém sulfuroso pela realidade e, especificamente, pelas cartas que esta lhe deu. E na televisão, tal como nos filmes, Garland, que escreveu e realizou os oito episódios, cria uma tensão muito própria, em que por mais pressa que se tenha em comer as linhas, virar a página, saber o que acontece a seguir, a sua abordagem é deliberadamente contida, ao mesmo tempo sensual e enervante, desmontando a cronologia para seguir as personagens de perto, e nos fazer ver, não o que sucede, mas a forma como os eventos as arrebatam, e mudam a sua forma de encarar a realidade. É uma série que dá saltos desarmantes, mas que, por outro lado, se delicia nas intermitências da acção, em indagações que se arrastam, e que permitem aos actores desenvolver personagens numa realidade ameaçadoramente próxima, mas na qual sentimos alguma dificuldade em respirar. Por isso, se nos sentimos absorvidos, seguimos a intriga como o leitor de um policial num futuro próximo mas que não deixa de nos soar implausível. Com uma cinematografia apoiada em cenários e ambientes pulsantes, que fascinam e, ao mesmo tempo, provocam uma certa claustrofobia, de forma compassada, Garland serve-se de ritmos psicológicos como um mestre do suspense, numa sensibilidade extremamente séria como raramente se viu na televisão. Os diálogos estão cheios de arestas, prosseguem em tons menores, com frases curtas, quase crípticas. E, por isso, a experiência de assistir a esta série é a de entrar num estado de transe hipnótico.
Não querendo ir muito longe no desvendar da trama, fiquemo-nos por uma sinopse do primeiro episódio. Sergei (Karl Gusman), um programador de inteligência artificial que trabalha na tal empresa tecnológica, que deixa os paralelos com gigantes como a Google naquele ponto de rebuçado, faz uma apresentação ao CEO da Amaya, Forest (Nick Offerman, num invulgaríssimo e magnético papel dramático), secundado por Katie (Alison Pill). Aparentemente, impressionados com os seus talentos, promovem-no ao departamento conhecido como DEVS, ou seja, onde a empresa se lança na busca de alvos para lá do território hoje acessível às capacidades humanas. No primeiro dia naquela equipa mantida isolada do resto do campus onde a empresa tem as suas instalações, Sergei entra no edifício misterioso em que a arquitectura se funde com a tecnologia dando origem a uma espécie de organismo frio, respirando calma e perturbadoramente, como num sonho. Sergei já não volta a casa e é encontrado morto depois de estar desaparecido durante 24 horas, no que é caracterizado como um suicídio. Lily Chan (Sonoya Mizuno, que tinha já entrado em “Ex Machina” e “Annihilation”), programadora também na Amaya e namorada de Sergei, não se conforma com a tese do suicídio, e não demora a perceber que algo de tenebroso está a ser urdido do outro lado da cortina no estranho departamento chamado DEVS.
Nick Offerman, como já se referiu, tem um desempenho brilhante fugindo aos habituais registos na comédia, para nos dar o retrato de um líder de uma tecnológica num profundo luto, depois de ter perdido a filha, e que se perde nesse mito quase messiânico que é conferido hoje a estas figuras pelos consumidores e pelos media. É a denúncia de uma ficção construída a partir de uma forma de histeria em massa, em que o consumismo adquire o relevo de uma fé, com estas empresas cercadas de um halo e de uma adulação absurda, formando com os seus funcionários e seguidores uma espécie de culto. Os seus produtos, lançados perante multidões em êxtase, mais do que coisas, parecem revestidos de um prestígio como se se tratassem de tábuas da lei de um porvir que hoje, ao invés de se ir introduzindo aos poucos, parece cercar-nos de todos os lados, não sendo certo se já somos desse futuro que olha o passado com uma altivez desdenhosa. Esta fé parece tornar a própria teologia uma coisa obsoleta, servindo em seu lugar uma forma de incontido optimismo diante das promessas da tecnologia. E se esta é uma série que sugere aspectos ominosos nesse admirável mundo novo cuja rota já se alinhou com o nosso, o que Garland traz a este formato é uma espécie rebelião. Uma série que levanta armas desde logo contra o regime de um entretenimento inofensivo, serializado, constrangido por modelos cada vez mais orientados para corresponder às métricas oferecidas pelos comportamentos de manada. E, nisto, inscreve-se também uma forma de sedição contra o cenário de determinismo social com o qual cada vez mais nos vemos confrontados, neste apocalipse alegre em que abdicamos de uma intervenção política, dentro da comunidade, para buscar simplesmente uma posição confortável, comendo pipocas enquanto o mundo se desfia de um final para o outro, com cada vez menos margem para o que é propriamente humano.
“O universo tem uma natureza determinística”, é dito a Sergei no primeiro episódio, numa espécie de preâmbulo em que as fundações da trama são baptizadas com um acto de violência que os perpetradores vestem a frieza de quem toma tudo o que acontece como simplesmente predeterminado. A escolha, afinal, não passa de uma ilusão. É a beatitude de que gozam os ignorantes. De acordo com estes fanáticos de uma forma de pragmatismo radical, não somos verdadeiros agentes do destino mas meros títeres; somos os passageiros que gozam de uma perspectiva na primeira pessoa de um filme que segue o carril fixado desde a centelha que fez explodir o universo na sua infinitamente complexa teia de causas e efeitos. Mas é neste ponto que Garland entretece essa forma de angustiado desvio, um finíssimo fio de cabelo entretecido na malha da narrativa, e que, se não altera o resultado, altera profundamente o sentido. No fim, a mesma tecnologia que dilacera a nossa crença no livre arbítrio, serve como uma expansão da realidade que nos oferece uma forma de escapar aquele fatalismo que parece estar inscrito na nossa condição, e é um simulador o que parece apontar para uma hipótese de fuga e redenção. Também assim, a série de Garland serve-se daquele ideal do romance como género omnívoro, uma arte insaciável que se alimenta de tudo, e que atinge a morte na sua convicção, deixando algo mais para lá da tão desarmante noção dessa escuridão que em vida nos encurrala nas horas mais difíceis de engolir. E Garland põe um dos personagens a recitar versos de Yeats e de Larkin, e, deste lado, como não ficar siderado quando o fio da trama se ata tão perfeitamente, para nos fazer acreditar, como garante Martin Amis, que são as palavras o que nos dá este sentido de si, do mundo e do próprio fim. Mesmo se nos ameaçam, é só quando as palavras se perdem que o sentido nos escapa, e, então, mais valia que estivéssemos mortos. Hoje, quando tantos têm com as palavras um pacto tão vago e frágil, que os faz falar como se estivessem amordaçados, a morte obtém deles um medo quase frívolo. Por contraste, leiam-se alguns versos de “Aubade”, que na série adquirem uma substância intolerável, mas doce, imensamente animadora, como se escritos na hora em que nos despedimos de alguém que, afinal, não deixámos de amar: “A religião empenhou-se nisto,/ Vasto brocado musical roído pela traça,/ Criado pra fingir que não morreremos,/ E especiosos ditos, como “Nenhum ser consciente/ Pode temer uma coisa que não irá sentir”,/ Não considerando que é isso mesmo o que tememos: não ver, ouvir,/ Não tocar ou cheirar ou provar, nada com que refletir,/ Nada para amar, ou a que se unir,/ A anestesia da qual ninguém regressa.” Estes versos esplendorosamente truncados, misturados com os de “The Second Coming”, de Yeats: “Gira e gira no vórtice crescente/ O falcão não consegue ouvir o falcoeiro;/ As coisas desfazem-se; o centro perde a gravidade e cede;/ Mera anarquia é solta sobre o mundo,/ Solta a maré de sangue turva, afoga-se/ Por toda parte a cerimónia da inocência;/ Aos melhores falta toda a convicção, já os piores/ Estão cheios de apaixonada intensidade.” Há muito que a televisão não encontrava uma forma de nos encostar o futuro como um lençol ao pescoço, obrigando-nos a sonhar com o passado para encontrarmos alguma esperança. Garland soube erguer-se ao cume dessa sensação de se ter uma única vida para entender as palavras mais importantes, soube encarar o vazio absoluto, e fazer o que faziam os antigos diante da morte: ler-lhe poemas.