Dez mudanças virais


O fim do mundo já foi anunciado demasiadas vezes, algumas durante a vida de cada um de nós, para podermos acreditar nas profecias.


Sob este ponto de vista, a actual pandemia limita-se a engrossar as filas das seitas milenaristas. No entanto, o mundo como o conhecíamos acabou e ainda não temos o distanciamento suficiente para percepcionar todas as mudanças ou sequer as mais importantes.

A digitalização da sociedade deu um passo de gigante. O ensino e o trabalho deixaram de ser presenciais, resta saber em que percentagem o voltarão a ser. A digitalização pode facilitar a melhor distribuição de trabalho, que subitamente se tornou escasso. Em matéria de ensino, a perda da interacção entre professor e aluno poderá reforçar ainda mais a alienação de uma geração que já vive dentro de uma bolha.

O controlo digital da privacidade deixou de conhecer quaisquer limites. Já tinham caído os do bom senso e da vontade esclarecida; agora caíram os da lei, por desuso dotado da convicção de obrigatoriedade.

Uma recessão económica profunda a caminho da depressão divide os optimistas. Tempo para o Green Deal ou tempo para a Brown Economy?

Nem todas as mudanças radicais são más. A necessidade de, para prevenir a pandemia, confinar os sem-abrigo pode ser a porta aberta à concretização do direito à habitação.

A quebra nas cadeias logísticas provocou o caos nos mercados de commodities. O petróleo atingiu preços negativos. A droga nunca foi tão cara. Durante o confinamento, a uberização da economia deu mais um passo em frente, com a distribuição porta a porta de produtos de primeira necessidade.

Os conflitos congelados são, como os vírus, oportunistas. No leste da Ucrânia, a guerra civil não respeita o confinamento. Nas Filipinas, os islamitas aproveitam com renovado vigor primaveril o enfraquecimento viral do Estado.

Tomado pelo vírus, o Estado é ultrapassado em dinamismo pela iniciativa privada: nas favelas brasileiras, colocadas em lockdown pelas diversas associações criminosas que as controlam; em Nápoles, com a Camorra a distribuir comida e dinheiro pelos mais pobres; e no México, com os narcoclãs a abrirem mão das novas riquezas, papel higiénico e álcool em gel.

O Estado contaminado pelo vírus cresce, aumenta a dívida, esquecendo-se de dizer que irá cobrar mais impostos para a pagar, regressa à economia e às empresas, nacionaliza, transforma créditos em capital social. O liberalismo faz fila no Terreiro do Paço, torce a boina e pede, como sempre se pediu por ali.

O vírus também afecta a geringonça, mesmo na modalidade de coitus interruptus em que vive desde Outubro do ano passado. O PCP regressará à pureza das origens e ao combate à austeridade. O Bloco perceberá que não será o vírus a fazê-lo entrar para o Governo. A luta pela sobrevivência política devolvê–lo-á à competição com o PCP. Concorrência desleal, porque a boa dicção teatral não bate a Intersindical.

O vírus trará um aumento da conflitualidade social, com ou sem confinamento. Muitos dos novos desempregados não são sindicalizados porque não integram nem a função pública nem o sector público dos transportes, onde o emprego e a remuneração estão protegidos. A contestação social inorgânica, sem enquadramento sindical, poderá ser canalizada pelos oportunistas de serviço, longe do leque tradicional dos partidos políticos. Teremos casos de partidos-cogumelo, a crescer no Outono e a desaparecer na Primavera. Pior será se no entretanto cristalizarem no Parlamento, por via de eleições antecipadas.

Quando muitos sonhavam já com a imortalidade, chegou a pandemia. Já não era sem tempo.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990