1. Em tempos de pandemia, de multiplicação de máscaras, é nos olhos que se leem os estados de espírito. Passa-se por alguém com máscara na rua, no supermercado, na farmácia ou onde for, e pelo olhar percebem-se angústias, medos, raivas, agressividades, indiferenças, pobreza. Mais raramente, tranquilidade, serenidade. Também se percebe a simpatia de um sorriso agora tapado ou uma cumplicidade pela situação um tanto surrealista. É sobretudo fascinante observar as crianças que usam máscara em sítios públicos. Os seus olhares não mentem mesmo. Com a boca tapada, é nos seus olhos traquinas, brilhantes, tristes ou assustados que podemos encontrar a força e a inspiração para recomeçar com prudência e determinação. Os olhos das crianças são livros abertos. São genuínos. Exibem tudo. Do medo à felicidade radiosa, com a ingenuidade sobretudo otimista que só elas têm. O que dizem os olhos é também uma nova forma de comunicação e de nos lermos uns aos outros. Estamos a aprender a rir sem mostrar a boca e os dentes. É mais um ensinamento destes novos tempos.
2. Os portugueses estão à beira de verem aliviadas certas medidas de confinamento estabelecidas pelo estado de emergência gradativo que temos tido e que tem sido bem respeitado, limitando a pandemia e evitando o colapso do frágil Serviço Nacional de Saúde que temos. Não se duvide que foi o confinamento responsável que evitou o pior porque, em termos de prevenção governativa, as coisas andaram a reboque da população, como se viu pelo recolher em casa, o fecho de escolas e a hesitação nas máscaras. Isto para não falar de declarações oficiais assegurando que o vírus não passava de pessoa para pessoa. Agora vem o regresso possível a uma vida mais ativa, com uma retoma gradual. É uma fase absolutamente crucial em que a responsabilidade individual é ainda maior e o civismo se torna a chave de um futuro coletivo minimamente seguro. Só a soma de comportamentos corretos dará um resultado positivo. Tudo sem, no entanto, atropelar e arrumar os mais velhos e os mais frágeis, limitando os seus direitos, liberdades e garantias. Essa preocupação tem de ser quotidiana e não se limitar a celebrações pontuais que podem ter efeitos perversos e induzir comportamentos erráticos que dividiram lamentavelmente os portugueses. Ainda por cima, defendidas sem a postura de Estado que se exige a quem se reclama estadista. Mesmo limitada, a comemoração implica muito mais pessoas do que as que têm estado nas sessões mais recentes. Vai haver mais jornalistas. Mais técnicos. Mais guarda-costas. Mais militares da segurança geral da PSP e da GNR. Mais policiamento nas zonas adjacentes. Tudo ainda durante o estado de emergência.
3. A preocupação com o estabelecimento do que poderemos chamar o novo normal faz todo o sentido. Há que definir prioridades e repensar muita coisa, começando, naturalmente, pela eficácia do Estado, que é praticamente nula no que diz respeito à economia e ao apoio social junto das pessoas. Nas últimas semanas ouvimos falar de milhares de milhões para aqui e para ali. Ouvem-se os supostos beneficiários e todos são unânimes em dizer que não receberam rigorosamente nada. A Segurança Social já não funcionava e agora está ainda pior. É essencial pôr ordem nessa máquina gigantesca e na sua teia burocrática de funcionários para que ela chegue onde deve e pague a quem descontou. O resto são canções de embalar. Assim como o são estes milhões todos de que se fala. Vendo bem, são quase sempre os mesmos que são anunciados. Normalmente, Bruxelas proclama uma verba gigante; depois, cá, o Governo anuncia um reforço local, enquanto os ministros e os secretários de Estado falam por setores. São sempre os mesmos milhões. Parte deles têm de chegar à economia pelos bancos, que burocratizam os procedimentos. Por isso, é bom lembrar que a gestão dos nossos banqueiros já custou a Portugal e aos seus contribuintes qualquer coisa como 25 mil milhões de euros. Isto sem contar com as depravadas comissões bancárias impostas aos clientes. Como diz o povo, é muita fruta. O setor bancário foi-nos maligno. Agora cabe-lhe redimir-se, mas parece não ter muita vontade disso.
4. A propósito de banca e de dinheiro, é importante não deixar que a pandemia permita que alguns atirem as suas responsabilidades para debaixo do tapete. É essencial reclamar que sejam publicadas, escrutinadas e validadas por todas as instâncias dignas de confiança (sublinhe-se, de confiança) as contas da Associação Mutualista e do Banco Montepio. Já bastou de silêncio e opacidade durante anos. Os tempos que correm não podem ser pretexto para ocultações quando se fala em problemas da ordem dos 500 milhões de euros no banco e se desconhece a situação verdadeira da mutualista. Há contas a prestar a 600 mil associados e ao país. Desde logo porque se trata de uma instituição que resistiu a muitas crises nos seus quase 180 anos, até chegar a gestão de Tomás Correia.
Escreve à quarta-feira