No Verão de 1518, uma mulher saiu de sua casa em Estrasburgo, em França, e começou a dançar na rua. Dançou sem parar durante uma semana e não tardou que umas dezenas de pessoas, depois centenas, se lhe juntassem.
O fenómeno, que ficaria conhecido como “epidemia de dança de Estrasburgo”, foi documentado pelos contemporâneos e é ainda hoje objecto de estudo e fascínio. As explicações são muitas e instáveis: crenças religiosas, aliadas ao desespero colectivo trazido por anos de más colheitas, doenças e conflitos sociais e religiosos terão levado a um fenómeno de histeria em massa que as autoridades inadvertidamente ampliaram, acreditando que a ‘cura’ estaria em deixar que os ‘contaminados’ dançassem até à extinção do impulso. O que se sabe sem dúvida é que há 500 anos, sob um calor tórrido, centenas de pessoas dançaram na rua sem motivo aparente e contra a sua própria vontade até ao colapso e, em muitos casos, até à morte por exaustão ou enfarte.
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A dança como expressão contagiosa da angústia: num mundo tecno-industrializado, rotinado, desde os gestos estropiados pelas fábricas aos trejeitos absurdos da vida de escritório, da falsa ergonomia dos automóveis ao encolher de barriga em hora de ponta no metro enquanto o polegar desliza até ao infinito pelo ecrã do telemóvel, a dança tanto pode ser um frémito de desespero, revolta epiléptica do corpo, como a (re)ritualização e estranhamento dos movimentos quotidianos, um convite a sacudir o corpo do seu ensimesmamento. A dança é “uma experiência humana […] fundadora de uma nova poética. É, certamente, uma experiência utópica no sentido em que inventa um ‘lugar’ até aí inexistente […].” (Laurence Louppe, Poética da Dança Contemporânea). Se, no espaço público, um de nós aceder a esse lugar, haverá outros que se lhe juntem?
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Em Os Cavalos Também se Abatem, romance breve de Horace McCoy publicado em 1935, em plena Grande Depressão, Robert e Gloria, jovens sem trabalho ou perspectivas de futuro, participam numa maratona de dança em troca de comida grátis, um sítio para dormir e um eventual prémio monetário ou até uma oportunidade de singrar em Hollywood, caso sobrevivam às sevícias perpetradas à laia de entretenimento (e de auto-empreendimento) pela espécie de máfia que organiza as maratonas, sob o olhar de uma multidão sedenta de drama, competição feroz, histórias de amor e de superação.
Na pista, vigilantes garantem que nenhum dos pares pára de dançar. Acicatam, assediam, ameaçam. A dança aqui é servida por um “sortido extravagante de braços e de pernas” que devem mover-se sem interrupções durante dias a fio, sob pena de serem desclassificados. Pernas e braços como peças de uma máquina, desprovidos de cabeça e órgãos, de espírito e vontade, do desvio ou da hesitação. É uma dança que reproduz os procedimentos mecanizados do fordismo então vigente, uma dança desalmada, dança que é simultaneamente espectáculo (como os gladiadores e as feras o eram no Coliseu) e trabalho (do próprio contra o próprio corpo, que explora, e contra os restantes concorrentes, igualmente pobres sem futuro e esfomeados).
O contágio perpetrado por esta dança infernal ao som de orquestras fanhosas e anúncios publicitários é difuso, insidioso. Não se sabe dizer quando e onde começou; o que é que, ao certo, leva aquelas pessoas a crerem que a sua melhor possibilidade de sobrevivência é dançar até ao colapso. Provavelmente trata-se de um contágio que já havia tido início há muito, que vinha de antes, condição tutelar de uma sociedade que dançava febrilmente e sem horizonte ao som das máquinas, do dinheiro, do sonho americano.
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O sonho comanda a vida e este em particular, o sonho americano, ainda comanda o mundo inteiro. É aquele ao ritmo do qual também os nossos pais, também nós, dançamos. A geração mais generosamente ‘coreografada’ (salvaguardadas as diferenças de classe, raça, género e até geográficas), a do pós-guerra, é aquela que agora deve ser protegida do contágio do coronavírus. É também a que mais resiste à clausura e ao isolamento, a que mais demora a abandonar os pequenos rituais quotidianos de sair para comprar o pão, dar uma caminhada ou encontrar-se com os amigos no jardim. Os mais novos policiam-lhes os gestos, mostram-lhes vídeos didácticos que simulam o possível percurso do vírus invisível (a sua dança?) desde a mais inocente interacção humana ao fatal alojamento na boca ou nos pulmões daquele que a partir daí será transformado num número, parte de uma curva anónima que é necessário domar, de uma massa de ‘infectados’ que é preciso confinar. Os mais velhos não sabem se algum dia poderão regressar às suas insofisticadas danças, de contemporaneidade duvidosa (caminhar, ir ao pão, ler o jornal no café, são já gestos de arquivo), se voltarão a sentir o movimento como algo que lhes pertence, expressão, se for preciso, da sua zanga com o mundo, da sua singularidade. Temem, ao ser-lhes proibido algo tão simples como ir à rua, perder para sempre uma orgânica, uma matéria pessoalíssima, viva e visceral.
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“Cuidado, essas luvas podem estar contagiadas”, ouvi uma mãe dizer à filha pequena que brincava perto de onde alguém tinha abandonado um par de luvas descartáveis. Ri-me de mim para mim. Um objecto pode ser um ponto de contágio, mas não pode estar contagiado. Estar, e estar contagiado, é condição de organismos vivos. Mas, numa altura em que nos explicam que este vírus sobre o qual sabemos tão pouco e que de um dia para o outro arregimentou toda a nossa existência, não está vivo, mas também não está morto, parece-me compreensível esta indiferenciação entre luvas e mãos, entre latex e pele exposta, entre quem ameaça e quem é ameaçado.
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“Qualquer doença que seja vista como um mistério e seja profundamente temida será considerada moralmente, se não literalmente, contagiosa.” (Susan Sontag, A Doença Como Metáfora). A hermenêutica dos números, gráficos, fórmulas de reprodução do vírus – no fundo, a linguagem distanciada e abstractizante da matemática – coloca-nos a todos, doentes e potenciais doentes, sob o jugo dessa “pesada cidadania”, a da doença contagiosa, com as suas falácias e burocracias. Ao mesmo tempo que nos encolhemos e sustemos a respiração sempre que alguém se cruza connosco no passeio ou no elevador, partilhamos no Facebook as homilias beatíficas do pivot de telejornal e as várias declinações do “vai ficar tudo bem”, esse “xamanismo mediático” (João Lopes, covid–20.blogspot.com) simbolicamente tão pobre que, repetido até à exaustão, se torna mudo e inumano como os próprios números contra os quais quer ser um bálsamo.
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Pensávamos que podíamos controlar tudo. Através das apps, do Google, dos telemóveis e dos computadores, sobretudo os filhos e os netos (os millennials e os que vêm a seguir) ainda pensam que podem controlar tudo. Cedem sem dilema o tracejado dos seus movimentos, das suas preferências, das suas angústias, ao Google, ao Facebook ou aos governos que comprem esses dados. É normal sermos controlados; também nós controlamos tudo. Esperamos da tecnologia que nos responda a tudo, que nos mostre tudo, que nos livre do não-saber, do invisível, da ambiguidade.
Imagens de satélite mostram as valas comuns que estão a ser abertas no Irão para enterrar as centenas de mortos por Covid-19. Pretendendo denunciar o ocultamento do número real de mortos por parte das autoridades do Irão, um país sobre o qual a maioria de quem agora me lê, tal como eu, pouco sabe, estas imagens constituem um escabroso exercício de viewmaster em que a tecnologia condescende. Mortos enterrados em valas comuns cujas imagens estão a ser difundidas por ecrãs de todo o mundo, assim tornados duplamente anónimos, desprovidos de um último reduto de dignidade e do direito a não serem espiolhados por imitações de um qualquer deus infantilóide, insone e, porque não sabe o que seja a intimidade, incapaz de guardar os segredos que lhe contam.
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Os millennials são como esses camponeses exaustos e supersticiosos de 1518: continuam a dançar contra a sua vontade ao rufar dos tambores de um progresso em que não acreditam, que desprezam, mesmo. Às vezes dançam até por vontade própria, ao fim-de-semana, com hora marcada para atordoar a frustração semanal.
Tal como os burgueses de Estrasburgo deram aos pestiferados da dança um recinto com músicos onde podiam dançar até que a mania passasse, também as gerações mais velhas enfiam os seus filhos em cenários manhosos com música tóxica e ordenam-lhes que continuem a mexer-se. Tal como haviam feito com eles os seus pais, e com os pais e os avós deles antes. A maratona não pára e não poupa ninguém. Quem colapsa ou desiste deve envergonhar-se: é porque não tem brio, não tem iniciativa. É porque não soube rasteirar o vizinho ou limitar-se a arrastar os pés e fingir que dança para continuar em jogo.
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“É possível que, em determinado ponto do seu percurso, o homem se tenha sentido tão entediado ao andar que esse ataque de tédio o tenha levado a transformar o passo de corrida em passo de dança. Comparado com o movimento linear e retilínio do andar, a dança, com os seus movimentos repletos de arabescos, é um luxo que se subtrai totalmente ao princípio da produção.” (Byung-Chul Han, A Sociedade do Cansaço).
Não há moral ou conclusão para estas notas. Começo com a dança e a ela regresso, sabendo que toda a gente dança à sua maneira, tal como toda a gente canta no banho, tal como às vezes, mesmo nas saídas programadas de sexta-feira à noite, se é feliz em pistas de dança peganhentas de cerveja. Sabendo que de algum modo a possibilidade e a vontade de dançar nos é comum, teço em torno dessa ideia o pressentimento de que é no tédio, esse monstro raro e arredio ao princípio da produção (da virulência), que se encontra o tal “lugar” de dissidência onde uma poética da dança (do movimento como imaginação) e do voltar à rua é ainda possível.