Vírus: a história de Dr. Jekyll e Mr. Hyde

Vírus: a história de Dr. Jekyll e Mr. Hyde


Atualmente, considera-se que os ERVH são um motor importante da evolução humana, existindo inclusive uma nova perspetiva que pensa existir uma relação simbiótica entre os retrovírus e os seus hospedeiros.


Dezembro de 2019: o mundo acorda para uma nova ameaça, sob a forma de uma entidade de dimensões ínfimas, invisível a olho nu. Esta entidade, um vírus, disseminou-se de uma forma bastante eficiente pelos quatro cantos da Terra, causando uma pandemia única nesta geração. Sir Peter Medawar, Prémio Nobel da Medicina em 1960, caricaturou os vírus como “um pedaço de más notícias envolvido por proteínas”. Eckard Wimmer, virologista da Universidade Stony Brook (Estados Unidos), envolvido na reconstrução de um vírus sintético, descreveu que, sabendo-se a fórmula genética do vírus, era possível a sua reconstrução, tendo inclusive escrito a fórmula química empírica do vírus da poliomielite: C332,652H492, 388N98, 245O131,196P7,501S2,340.

Por mais estranho que pareça pensar num vírus como uma simples fórmula química, a verdade é que eles se comportam muitas vezes como compostos inertes, desprovidos de vida tal como a conhecemos. São, portanto considerados por muitos como uma forma simples sem vida, com informação genética substancialmente inferior ao de uma bactéria. Tal visão é verdadeira quando considerando o vírus no ambiente. No entanto, tal interpretação dos vírus é demasiado simplista. Os vírus, tal como os conhecemos, tiveram, tal como os seres humanos, uma trajetória de evolução extremamente vasta e complexa e, apesar de considerados inertes no ambiente, quando em contacto com o hospedeiro devem ser tidos como entidades vivas, dado que nascem e morrem como todas as outras formas de vida.

A sequenciação completa do genoma humano, em 2001, uma das mais importantes descobertas deste século, levou à descoberta da verdadeira essência do ser humano, em que nos apercebemos que o que faz de nós seres vertebrados constituí apenas 1,5% do nosso genoma, enquanto quase 9% são constituídos por sequências de retrovírus endógenos humanos (ERVH); adicionalmente, existem ainda duas “entidades misteriosas” que, juntas, contabilizam 34% do genoma humano. Pensa-se que estas sequências sejam derivadas dos ERVH ou por eles controladas. Retrovírus são vírus que conseguem, após entrada nas células, inserir o seu material genético no material genético do hospedeiro, alterando o material genético da célula. No caso dos ERVH, as sequências inseridas no genoma do hospedeiro não são capazes de produzir o vírus, pelo que este vai passando de geração em geração sem constituir risco. Atualmente, considera-se que os ERVH são um motor importante da evolução humana, existindo inclusive uma nova perspetiva que pensa existir uma relação simbiótica entre os retrovírus e os seus hospedeiros, em que o vírus beneficia de não matar o hospedeiro e o hospedeiro beneficia da sua existência.

Do ponto de vista do vírus, a vantagem é evidente: mantendo-se no genoma do hospedeiro, o vírus consegue passar entre gerações, conseguindo uma certa “imortalidade”. No caso do hospedeiro, e embora menos aparente, o vírus confere-lhe uma aptidão que o hospedeiro não tem, a letalidade. Um exemplo bastante conhecido desta simbiose são as vespas parasíticas (as vespas que colocam os seus ovos dentro de lagartas). A parceria entre vírus e vespas é tão intrínseca que muitos destes vírus constituem parte da linhagem genética dos ovos, e emergem como vírus completos quando a vespa põe os ovos. Em circunstâncias normais, os ovos das vespas não sobreviveriam, sendo detetados e destruídos pelo sistema imunitário da lagarta. Mas, nesta fase, a agressão viral entra em ação, paralisando o sistema imunitário da lagarta e monopolizando aspetos-chave do seu metabolismo interno, convertendo-o numa câmara de incubação para as larvas de vespa. A complexidade desta simbiose é tal que os vírus obrigam a lagarta a produzir açúcares necessários para o desenvolvimento das larvas de vespa, contribuindo para a disrupção total do sistema hormonal da lagarta e impedindo a sua metamorfose natural em borboleta ou traça.

Um outro exemplo de simbiose entre vírus e hospedeiro pode ser encontrado nos seres humanos. Durante a evolução do embrião no útero materno é criada a placenta, que serve de interface entre a mãe e o embrião. Fundamental para toda a estrutura é uma zona especializada, uma membrana extremamente fina que separa o sangue da mãe do sangue do feto, permitindo a passagem de alimentos para o feto enquanto remove produtos prejudiciais do seu sangue. Adicionalmente, metade dos antigénios do feto são do pai, o que significa que são desconhecidos para o sistema imunitário da mãe, implicando que, se os sangues da mãe e do feto entrassem em contacto, o sistema imunitário iria rejeitar o feto – num mecanismo similar à rejeição observada em transplantes. Esta membrana, conhecida como sincício, era um mistério, dado que as células humanas não têm a capacidade de se fundir e formar o sincício. No entanto, está estabelecido que os retrovírus possuem essa capacidade. Em 2000, um grupo do Instituto de Genética no Massachusetts descobriu uma proteína que permitia às células fundirem-se, tendo confirmado que a proteína não é parte da nossa herança vertebrada, mas originava de um gene de um ERVH. Estes resultados, confirmados posteriormente por um grupo francês, são uma das primeiras evidências da existência de simbiose genética envolvendo retrovírus na nossa linhagem evolutiva. Muitas outras evidências existem da relação benéfica entre vírus e hospedeiro, como a capacidade de deteção de danos causados, por cancro, no DNA de células dos testículos, cuja regulação por um ERVH leva à destruição destas mesmas células, ou, num aspeto relativamente mais simples, na nossa capacidade de digerir amido, o hidrato de carbono mais comum na nossa alimentação (encontrado nas batatas, arroz e massa).

A verdade dos vírus é que não são só entidades simples, vocacionadas apenas para causar graves problemas de saúde, mas que devem ser encaradas como entidades complexas que estiveram e estão presentes no mundo que nos rodeia, bem como se encontram integradas no âmago do nosso ser, coevoluíram com os seres humanos e nos permitiram ser o que somos atualmente. Estamos, portanto, na presença do Dr. Jekyll e Mr. Hyde do ser humano.

 

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